‘Está uma tarde linda, azul, morna, diáfana. Converso na
Livraria Ferreira com o Fialho, quando entra esbaforido e pálido o
pintor Artur de Melo, que conheço do Porto, e diz num espanto, ainda
transtornado: – Acabam de matar agora o Rei! – O quê?! – Eu ouvi, ouvi os tiros, deitei a fugir…
Fecharam-se à pressa os taipais das lojas. Uma mulher do povo exclama: – Mataram agora o Rei!
Vi os que o mataram. Eram três. Dois lá estão estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!…’
‘Porque foi, por exemplo, morto D. Carlos? (…) E no
entanto já hoje se pode afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto
pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades. Respirou-se!
Respirou-se! – o que não impede que, a cada ano que passa, esta figura
cresça, a ponto de me parecer um dos maiores reis da sua dinastia. Já
redobra de proporções e não se tira do horizonte da nossa consciência.
(…) Não foram os seus defeitos que o mataram, foram as suas qualidades.
Só o assassinaram quando ele tomou a sério o seu papel de reinar, e
quando, João Franco, quis realizar dentro da Monarquia o sonho de
Portugal Maior. Foi esse o momento em que, talvez pela primeira vez na
história, os monárquicos aplaudiram um crime que os deixava sem chefe, e
se abriram de para em par as portas das prisões, congraçando-se todos
os políticos sobre os corpos ainda mornos dos dois desventurados.’
’Se o deixam viver, tinha sido um dos maiores reis da sua dinastia.’
‘Se o rei tratava os políticos como lacaios, tratava a
gente do povo com extrema bondade. Terá mesmo dito viver em um país de
bananas governado por sacanas.’
’D. Carlos aponta a África a uma plêiade brilhante de
oficiais, que ele próprio incita, compreendendo que o grande Portugal é
outro, e que esta faixa de terreno, com um clima agrícola horrível, só
pode ser vinha e um lugar de repouso e prazer. De lá, desse novo Brasil –
dos extensos planaltos de Angola, que duas vezes por ano produzem trigo
-, tem de nos vir o oiro e o pão. O resto é visão de pequenos
estadistas de trazer por casa. Só ele fala (e sonha) num Portugal Maior,
e num Portugal esplêndido.’
Raúl Brandão in Memórias, Vol. I, Renascença Portuguesa, Porto, 1919
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