Almoço com Isabel de Herédia
À
chegada ao segundo andar do prédio onde vivem os duques de Bragança, a
porta abre-se. Eu, republicano empedernido e preconceituoso, convenci-me
de que ia ser recebido por um mordomo daqueles à antiga com suíças até
ao queixo ou por uma empregada impecavelmente vestida e engomada.
Estupefacto, dou de caras com Duarte Pio e Isabel de Herédia a fazerem o
acolhimento. "Entre, entre", dizem-me com uma naturalidade e uma descontracção familiares.
Cheguei preparado para um chá com a
mulher casada há 20 anos com o pretendente ao trono português. Mas está
calor, muito calor. Quase que convocamos a ironia do Eça para dizer que
"está de ananases". As janelas da sala cheia de fotografias dos infantes
estão abertas para que o ar circule. Dispo o casaco e alivio o nó da
gravata. O duque de Bragança, que está de saída, pendura-mo no
bengaleiro de chão arrumado a um canto do hall de entrada. "O que é que
quer beber? Uma cerveja, um sumo..." Ainda estou pasmo. São eles que
fazem tudo. Fico-me pela água fresca que há de ajudar-me, ao longo da
conversa, a engolir as fantasias, porventura injustas, que fui
construindo ao longo da vida sobre estas pessoas. É a duquesa, dona de
uma discrição impressionante, quem vai à cozinha buscar o jarro e serve
os copos.
Sentamo-nos, frente a frente, vigiados pelo olhar de
Jesus Cristo pregado na cruz gigante que domina a sala de estar.
Licenciada em Gestão e especializada em Finanças na Universidade Getúlio
Vargas, em São Paulo, trabalhou na empresa do amigo António Bustorff
como gestora de fortunas e património até 1995. Depois do casamento com
Duarte Pio, desistiu da carreira. "Abdiquei a nível financeiro. Ainda
acompanhei os mercados durante um tempo, e de vez em quando ainda
acompanho, mas mudei de ramo. Ainda tentei continuar a trabalhar, mas
como tinha de passar muito tempo fora a acompanhar o meu marido - na
altura ainda não tinha as crianças - comecei a achar que não era justo
estar lá e acabei por sair." Dedica-se, até hoje, à gestão dos imóveis
da família, herança deixada ao marido pela última rainha de Portugal.
"Faço a gestão deste património, que a rainha D. Amélia deixou directamente ao meu marido. Foram os únicos prédios com que Salazar,
quando fez a Fundação Casa de Bragança, não pôde ficar. Esses prédios
têm vindo a ser restaurados. Tínhamos uma inquilina, até há pouco tempo,
que tinha feito o contrato de arrendamento com a rainha D. Amélia. Por
isso imagine a renda que ela pagava. Gostávamos imenso dela, era uma
querida, mas a renda era realmente muito baixa. E, ao longo deste anos, o
esforço foi tentar recuperar os apartamentos, os prédios, aumentar as
rendas e fazer que as casas fossem autos-suficientes."
O duque de
Bragança diz, por graça, que Isabel é "a ministra das Finanças" da
família. A duquesa sorri e confirma que tem queda para a tirania
financeira. "Normalmente, quando vamos às compras, o meu marido gosta de
ser mais gastador e eu sou mais mão de vaca, sou mais forreta. Temos de
ter atenção. Quando estamos em funções de representação temos de
representar bem quem somos e o país a que pertencemos. Mas depois, no
dia-a-dia, somos pessoas normais e discretas. Não esbanjamos, não
precisamos de estar a gastar de mais. Neste momento, não há nenhuma
família que não tenha de ter atenção ao orçamento e que não faça contas.
Não se pode dar passos maiores do que a perna. E faço questão de não
ultrapassar os limites."
Monárquica desde que se conhece, "não me
lembro de não ser", Isabel de Herédia não tem dúvidas de que as
monarquias são melhores do que as repúblicas. "Por exemplo, se
perguntarmos a qualquer pessoa quem é o presidente da Alemanha, ninguém
sabe. Se perguntarmos quem é o rei de Espanha, de Inglaterra, da Holanda
ou do Luxemburgo, quase toda a gente sabe. Depois começamos a
aprofundar mais, e indagamos quais são as economias mais desenvolvidas,
onde é que as liberdades são mais respeitadas, etc. É nas monarquias." A
pergunta é óbvia mas inevitável. Acredita mesmo que um dia vai ser
rainha de Portugal? "Há uma certa barreira, sobretudo da parte política.
Às vezes pergunto-me: vivemos numa democracia, defendemos a democracia,
toda a gente acha e sabemos que os países mais desenvolvidos da Europa
são os que têm monarquia. Mas depois, na nossa democracia que é tão boa,
há um artigo na Constituição que proíbe o referendo e que as pessoas se
pronunciem sobre o modelo de governo. Acho que é um bocadinho
hipócrita. Às vezes irrita-me um bocadinho esta coisa: se vivemos num
país democrático, porque é que não deixam o povo escolher? Agora, não
penso se vou ser rainha ou não vou. De certa maneira já me sinto, mas
digo sempre que Nossa Senhora é que é a rainha de Portugal e por isso
sinto--me muito mais à vontade. Mas, de certa maneira, quando estou lá
fora a representar Portugal, ou cá dentro, quando estamos a educar os
nossos filhos, o espírito de serviço, nós temos uma posição oficiosa. As
pessoas, quando vou na rua, perguntam como é que estão os nossos
meninos. Isto é, não são meus são de todos. Tenho essa noção de que a
minha família é de todos. Há uns que gostam mais, outros que gostam
menos, e há uns que não ligam nenhuma. Mas também sei que há muitos que
nos consideram família deles."
O filho mais velho, Afonso de Santa
Maria, tem 19 anos. Porque o pai, Duarte Pio, já fez 70, há de assumir
um dia a função de pretendente ao trono. "Isso, às vezes, pesa-lhe um
bocadinho", reconhece. E a dúvida que me assalta é a de saber como é que
se educa alguém para uma coisa que, constitucionalmente, não existe. "É
uma responsabilidade. Para qualquer pai é difícil. No fundo, o que
queremos sempre é que os nossos filhos sejam felizes, sejam confiantes,
desenvolvam as suas capacidades e que sigam a sua vocação. O espírito
monárquico e de serviço monárquico e a religião têm de ser dados a conta
gotas, porque se não ficam ateus e republicanos [risos). Se os
começarmos a obrigar a ir a tudo eles reagem e dizem "eu não quero isto
para nada". Mas eles, desde pequenos, têm vindo a acompanhar-nos, quer
cá dentro quer lá fora. E, de facto, a nossa maior preocupação é que
eles tenham confiança e se sintam felizes, que tenham este amor a
Portugal que nós os dois temos, e que tenham esta noção histórica
daquilo que representam. E eles sabem, porque nós dizemos sempre, mesmo
que vocês não venham a ser chamados, vocês são quem são. E isso tem uma
responsabilidade."
Habituada ao convívio com cabeças coroadas e
outras sem trono, não esconde admiração pela rainha de Inglaterra,
Isabel II, pelos monarcas espanhóis Juan Carlos e Sofia, pela rainha
Beatriz da Holanda ou pelo rei Balduíno da Bélgica, que morreu em 1993.
Mas é com Simeão da Bulgária, o rei deposto pelos comunistas e forçado a
50 anos de exílio, que tem mais empatia.
Apesar dos títulos
nobiliárquicos, Isabel de Herédia é mulher informal. Gosta de coisas
simples e mundanas. De caminhadas manhã cedo, de ir à praia e nadar no
mar ou de montar a cavalo, o que não faz há muito tempo, porque "me dá
paz de espírito". É apaixonada por livros. O que mais a marcou foi O
Perfume, de Patrick Suskind, porque "os cheiros estavam lá todos".
Devora romances históricos, aprecia António Lobo Antunes ou Agustina.
"Quando era mais nova, tive uma fase em que adorava o Camilo Castelo
Branco. E até é engraçado que ainda agora o meu filho fez um trabalho
que era uma comparação entre o Shakespeare e o Camilo Castelo Branco."
Sempre que pode vai ao cinema, mas também fica em frente à televisão
agarrada a uma boa série. "A Maria José Nogueira Pinto aconselhou-me uma
vez a ver o Prision Break. Era fantástico." De ter amigos em casa e
fazer jantares. "Não sou uma super-cozinheira, mas as poucas coisas que
faço, acho que faço bem." E até de contar anedotas. Sim, porque é pessoa
como as outras, garante. "Quando fiz o curso de Defesa Nacional,
algumas das pessoas que lá estavam olhavam para mim e tive aquela
sensação de que "o que é que esta está aqui a fazer?". Para muitos, se
calhar, estou sentada à espera de ir para um jantar, ou para uma festa,
ou outra coisa qualquer, e não faço mais nada. Tomara muitas vezes poder
dormir. Mas não me custa, que sou uma pessoa que acordo muito cedo. Mas
somos normalíssimos, depois temos é mais este trabalho."
Os dias
começam cedo, às vezes antes do nascer do Sol, pelas seis da manhã. "Os
meus e-mails seguem, normalmente, a essa hora. Está tudo a dormir e é
quando consigo ter tempo para ler o correio ou para ver as notícias.
Depois, sempre que posso, gosto de ir andar. Leio e ponho uma série de
coisas que estão atrasadas em dia. Até há pouco tempo, fazia questão de
ir levar os meus filhos ao colégio, que é quando conversamos um bocado e
rezamos o terço. Depois vou para o escritório, que é por baixo de casa.
Na hora do almoço, se não tenho nada marcado, vou para a ginástica, que
é outra coisa de que eu preciso. E depois, se possível, gosto de poder
estar em casa a partir das quatro ou cinco horas da tarde, que é quando
eles chegam e às vezes é preciso alguma coisa."
Ser rainha sem
coroa tem, apesar de tudo, algumas vantagens. "Por um lado dá mais
trabalho no sentido em que temos as responsabilidades e os deveres
todos, mas não temos staff nenhum que nos ajude em coisas que nos
facilitavam a vida. Por outro, tenho muito mais liberdade para dizer e
fazer o que quero, enquanto as rainhas não podem tomar certas atitudes
que eu posso. Se fosse rainha de facto, se calhar não podia guiar
sozinha quando quero e para onde quero. Provavelmente tinha de ter
guarda--costas. E teria, seguramente, menos liberdade. É claro que há
coisas em que tomo cuidado porque o que dizemos tem consequências. Quer
dizer, nem sei se tomo muito cuidado. Não sou uma pessoa que dê
escândalos, para infelicidade de muita gente" [risos].
Isabel de
Herédia é conservadora e mulher de fé. "Acredito que Nosso Senhor vai-me
guiando." Patrocina várias associações de solidariedade social de apoio
a crianças e doentes. E preside à Real Ordem de Santa Isabel, de que
fazia parte Maria de Jesus Barroso e conta também com Manuela Eanes.
"Somos cem senhoras portuguesas. E depois há também extranumerárias,
como era a rainha Fabíola. A vocação é rezar pela união das famílias. A
família é a coisa mais importante que temos e que hoje é muito atacada
por diversas frentes. E um país para ir bem tem de ter famílias de bem.
Mas, além disso, todos os anos damos dinheiro. Procuramos pelo país onde
é que é mais preciso e cada ano damos a uma instituição diferente. Não
temos assim tanto como isso, mas este ano vamos dar à Casa do Gaiato."
Atenta
à realidade política, não perdoa a ruína a que foram votados os sectores
produtivos nacionais após a adesão à CEE. "Agora vêm-nos dizer que a
agricultura e as pescas são muito importantes, mas naquela altura não
queriam saber disso para nada. Uma das coisas que me fazem imensa
impressão, e aí também é a diferença que eu aponto entre um rei e um
presidente, é que um rei pensa a 100 anos para a frente. E um
presidente, pensa em quantos anos? Não quer dizer que não haja bons
presidentes, mas quer dizer, pensa muito mais no curto prazo. Agora,
independentemente de monarquia ou república, nesta altura temos é de nos
unir todos para que o país sobreviva, vá para a frente e tenha pelo
menos mais mil anos. Mas devia haver um grupo estratégico que pensasse
em 50 ou 100 anos para a frente."
É tempo de despedidas. São quase
horas de jantar. Já de pé, pergunto se a família é rica. "Para mim ser
rico é uma pessoa ter interesses e não se acomodar. No plano económico,
temos a sorte de fazer bem as contas. Se nós queremos e temos de
representar Portugal, claro que às vezes dava jeito ter um bocadinho
mais de dinheiro. Mas não estamos mal. Não somos ricos, mas também não
estamos desesperados."
Ao longo da conversa repetiu, várias vezes,
que "o Duarte era o meu melhor amigo" e que "nem eu sabia que ia
casar-me com ele". Não resisti, por isso, a perguntar se tem memória do
momento em que se apaixonou: "Foi quando uma prima do meu marido, de
quem eu gostava muito e que é muito nossa amiga, se começou a interessar
por ele e eu fiquei furiosa. Foi aí que percebi que ali havia mais
qualquer coisa e que não era só uma grande amizade." E também nesta
história, de rainhas sem coroa que são pessoas como as outras, apesar
"dos altos e baixos como em todos os casamentos", são felizes para
sempre.
Publicado por Nuno Saraiva
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