Comemora-se
hoje (15/08/2013) a solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. É
um dos mais festivos dias da liturgia, ou não se referisse ele à Mãe de
Deus, celebrando um dos momentos da Sua vida tão entranhados no Orbe
Católico que, a par da Sua Imaculada Conceição, por definição pontifícia
infalível, também constitui artigo dogmático de fé.
É meu
propósito dedicar à SS.ma Virgem as linhas que seguem, prestando-Lhe
assim modesta homenagem no que nelas houver de virtude, e pedindo-Lhe ao
mesmo tempo que interceda pela terra portuguesa!
Jaz Portugal órfão de Rei. E é uma triste orfandade
porque não há Rei de facto, nem de direito.
O cabeçalho das palavras, que seguem, pode arrastar à
ideia de que a responsabilidade deste infortúnio é toda do liberalismo e do
sistema republicano. Está errado: eles têm culpa do desfecho produzido, grande
culpa até, mas não uma culpa exclusiva. Parte da culpa que não lhes cabe é da responsabilidade
de quem, na altura própria, devia ter levantado a genuína bandeira monárquica para
voltar à tarefa da restauração legitimista, sem o ter feito. E a omissão desse
dever teima em manter-se.
Aliás, não é uma coroa encimando o escudo nacional que dará
corpo à bandeira que não se ergueu, uma vez que corpo sem alma é matéria
informe. Portugal só regressará à Tradição, se recuperar a força anímica que o
tornou na Nação Fidelíssima. A culpa de uma orfandade real, está pois, em
primeiro lugar, numa linha dinástica que está longe, muito longe mesmo da
majestade, do esforço posto na luta e do amor ao sacrifício dos nossos antigos
Reis; vêm depois os áulicos, mestres na lisonja, indiferentes ao destino da
Pátria, sobrenadando no meio da procela desde que lhes garantam a sobrevivência
de uns títulos bolorentos; e, por fim, de forma mais difusa, aparecemos todos
os que, até hoje, nos mostrámos incapazes de cumprir as nossas obrigações. Enquanto
isto durar, o que se vir e ouvir a respeito de uma realeza extinta, ou é canto
fúnebre de sufrágio de mortos, ou não passa de um folclore de péssimo gosto.
O liberalismo
autointitulado de monárquico recolheu o património da Revolução Francesa, na
qualidade de herdeiro fiduciário, e por morte transmitu à República o
fideicomisso que recebera. Não foi, contudo, a República
algoz do liberalismo pretensamente monárquico? Não é isto suficiente para a
tornar indigna de suceder? De forma alguma, porque não cometeu qualquer crime
contra aquele de quem proveio a herança: acelerando as condições para a
defunção do liberalismo que aqui tratamos, e criando outras, a República apenas
foi cúmplice no suicídio gradual daquele sistema, mostrando-se com isso fiel
executora da vontade do autor da sucessão --- o espírito revolucionário da
Bastilha. A parcela de violência verificada na passagem do acervo, já muito
dilapidado, é de regra nos casos em que o cedente, embora cônscio da obrigação
que sobre ele impende, se aferra aos bens deixados para
reverterem a favor de terceiro. Não se andará muito longe se
pensarmos que são como rixas dentro de uma mesma família. Brigas tanto mais
acesas quanto é igual ou próximo o grau de maldade existente de um e de outro
lado. Estas desavenças são normais entre parentes carregados pelo peso enorme
de uma hereditariedade má.
Se
considerarmos falso que tudo se processou dentro de uma sucessão superiormente traçada,
também aí não se quebra a sequência. Teremos então que a República, que parecia
não passar de uma simples bastarda desejada, se chocou com o liberalismo por
forma acidental. Levada pela sua índole, que é promíscua, agitauit connubia more ferarum e apareceu nas vestes da oclocracia,
que nos esmaga fisicamente e nos destrói moralmente. Nem quarenta anos de
continência foram suficientes para a lavar do pecado: o incesto praticado tinha
de gerar uma filha de coito danado.
Escusado será indagar de que lado está a razão, porque razão, nos agentes daqueles
desmandos, sempre foi palavra de significado desconhecido. O que conta é a
linha que não se quebra: tão herdeiros são uns como os outros, apesar de uma legitimidade
nula por mais que a legalidade os cubra de títulos sucessórios. São efectivamente
herdeiros, mas herdeiros oriundos, sem qualquer excepção, de uma união condenada
pela ética. Daí o serem ilegítimos de origem. E carecem ainda da legitimidade que
mais conta --- a de exercício --- defeito esse visível no modo como usam o
poder usurpado: servem-se dele como o proprietário frui o bem de que é dono,
esquecendo a função social do seu direito.
Num livro, todo ele respirando cabala da primeira à última página, essa
ocupação a que alguns concedem foros de ciência, mas que não é propriamente
para ser levada a sério, e apesar do esoterismo que costuma acompanhá-la, não
obstante isto que não é nada pouco, dessa obra colhe-se um ensinamento
indisputável: vivemos sob o império da plebe, entendida a plebe como o clero, a
nobreza e o povo em grau degenerado (1).
A plebe é a comunidade política cedendo aos instintos mais vis da natureza
animal de cada homem. A sociedade bestificou-se. E a legião hoje dominante
empesta cada vez mais os ares com o hálito mefítico que exala. Impera pela
fatalidade da penúria moral a que chegámos, mais do que por qualquer outra
razão. Direito, entendido este como o poder legítimo na raiz da sua origem, na
forma como se exerce e, sobretudo, nos fins para que se ordena, isto é, um direito
verdadeiro, uno e bom, desse direito nem ponta dele. Méritos pessoais, não se
enxerga nenhum!
A turbamulta trepou e foi instalar-se no topo da hierarquia do Estado:
encontra-se na Presidência; passeia-se por S. Bento; senta-se nas cadeiras do
Governo; e o mais aterrador é que já se espalha dentro dos muros do que devia
ser o santuário inviolável de qualquer poder soberano, o seu último bastião ---
os Tribunais. Porém, não é toda esta gente que detém realmente o poder: grande
parte dela é submissa e deixa-se levar por forças ocultas. Num quadro destes,
que podemos esperar, principalmente quando uma podridão nauseabunda rói a
sociedade civil, coberta de chagas pestilenciais que os autênticos senhores do
poder já nem conseguem esconder nos seus conventículos secretos? A espúria
consaguinidade, que une liberalismo e república, não podia deitar frutos diversos
dos que temos diante dos olhos. Para isso foi projectada e levada à prática.
No entanto, quando pensamos
que a iniquidade trepou ao cume que é possível alcançar, reparamos que falta qualquer coisa.
De resto, a falar verdade, na iniquidade ou com ela, não se sobe; apenas se desce.
E
nem outra coisa podia acontecer. A iniquidade é negação
de Justiça, está
privada desse valor, o qual, nessa qualidade, não conhece limite porque se
reconduz a Deus, o Ser Infinito por excelência. Daqui, que seja impossível ao vício tocar no fundo: os defeitos podem
estar mais ou menos privados de perfeição, mas há algo que sempre sobra. De
outro modo, seria ir
atrás do nada, tarefa interminável ou,
caso se prefira, busca infrutífera porque o nada não existe. Temos assim que o Mal não conhece a profundeza máxima; não sabe onde se
encontra, nem nunca a atingirá. Sustentar o contrário seria
equivalente a afirmar a coexistência de duas forças com o mesmo grau de poder, e que apenas se
distinguiriam por se oporem.
Essa
gnose não é somente uma heresia religiosa nem uma heterodoxia filosófica; ela é, acima de tudo, um atentado à mais elementar lógica, constitui dialéctica de um absurdo
que surpreende e choca de tão primário que é. Com efeito, só o puro transtorno mental pode conceber um Infinito
dividido em metades que lutam entre si. E essa disputa teria de continuar indefinidamente,
porque a haver vitória de uma das partes em conflito, isso significaria
desequilíbrio de forças, o que contradiria
a base da doutrina dualista.
Facilmente se depreende como tudo isto não vai além de um
delírio mais ou menos febricitante, sendo de impossível realização o que nele
se proclama. O Infinito não tem igual,
porque é o Absoluto! Logo, quando se diz que a desordem
chegou a um ponto no qual o caos não pode ser maior, labora-se
num erro de nefastas consequências. Para baixar, como resulta do que acaba de
expor-se, a escada oferece sempre novos degraus!
O passado das convulsões sociais é um cortejo de transformações, onde a
ambição invejosa, como elemento motor, não está certamente ausente. Sirva de
exemplo o padrão da civilização no qual Portugal se formou, não se desejando de
modo algum defender que o trajecto foi igual em todos os passos dados: ao
aristocrata deu-lhe para ser rei; o burguês quis viver à lei da nobreza; o
descamisado procura o dinheiro que telinta nos bolsos dos ricos.
E o ideal da igualdade, que papel joga no meio deste drama? Nas bocas dos
seus actores, a parte que ali toma assume um destacado relevo. Custa a
acreditar. A igualdade que liga os homens é a da vocação de santidade com que
Deus nos criou a todos. Mas a plebe é crente? A plebe já nem blafesma: a plebe
ignora Deus! Pelo que a igualdade de que falarem será tudo menos a igualdade do
Evangelho. E fora desta igualdade, qualquer outra será uma mentira.
Qual das revoluções apontadas trouxe a igualdade aos povos? Chamar-se-á
igualdade à desolação de uma miséria crua e que o tempo torna mais extensa, que
só não está em perfeita simetria com a opulência porque esta é cada dia mais
restrita em número? Será igualdade encherem-se os vencedores dos privilégios
contra os quais se insurgiram? Ou pretende dar-se esse nome à descida de uns
para que outros subam? Isto é disposição
vertical, justa ou injusta consoante está ou não ao serviço do bem
comum. E só nesta escala pode a insubordinação dizer-se legítima, se vem para
combater a tirania e salvar a comunidade.
Acabam de ser enunciadas duas condições para que se recorra à rebelião: causa iusta e intentio recta. Falta o terceiro requisito: auctoritas principis (2). Ora este, ainda que não fora a degradação
a que assistimos, seria precisamente o de maior melindre: neste momento, quem é
o príncipe? No reino da Monarquia, não há. Já foi dito e não vale a pena
insistir. E fora dessas fronteiras? É verdade que chefe para um povo, sempre se
descortina; o contrário é que não. Todavia, ainda se achará, no conjunto de
pessoas ao qual o vocabulário corrente continua a chamar povo português, aquela
coesão mínima que permita considerá-lo como grei humana? Deus o permita!
Mesmo assim apetece perguntar se as ruas de acerba amargura, que penosamente
vamos percorrendo, não serão o caminho da expiação de um pecado social? Caiu em
desuso falar de pecado, até do pecado individual, mas a verdade é que aquele pecado
existe: é o esquecimento da lei divina por parte significativa de um povo. A
menos que entre nós se encontrem os dez justos que seriam suficientes para
livrar Sodoma e Gomorra do castigo que sofreram, tenha-se presente a certeza de
que o pecado social se paga já neste mundo. Se for o caso, a redenção só poderá
vir de uma catarse colectiva. Catarse difícil de conceber, se olharmos para a
eficácia que procuramos e que é, no fim de contas, o que importa. E justamente
por ser nestes termos difícil de conceber, porque exige muito e porque o povo
(a existir ainda tal figura) está debilitadíssimo, não parece que a suspirada
catarse venha a ser coroada de êxito sem uma intervenção miraculosa.
Que tem o milagre a ver no meio de um negócio humano, como é este exemplo
de um dos desconcertos saídos do ventre da
política? --- Tudo! Porque a ligação entre o natural e o sobrenatural é íntima,
permanente e indestrutível.
Há alguém tão insensato e temerário a ponto de tentar estabelecer o
divórcio entre Deus e a Sua obra? Estará porventura o escultor proibido de
talhar a estátua como lhe apraz? Ou o escritor de escrever como mais gosta? Ou
o compositor de lançar na pauta as notas do que tem como sendo de maior
melodia? Quem se atreve ao desatino de o afirmar?
Qualquer destes artistas, concluída a obra, eliminará as imperfeições que
lhe notar, o que até poderá suceder longo tempo depois de a ter terminado. Agem
deste jeito, porque eles próprios mudam. Deus não precisa de prazos, nem corrige
o que saiu de Suas mãos, porque é Acto Puro e à Sua providência não escaparam
as ocasiões e os momentos em que
interviria no governo do mundo com um influxo especial.
Naquilo que nos aflige: o milagre aqui será como o gesto de um Pai
extremoso, que carrega nos braços o filho depauperado e o transporta de
regresso a casa!
Joaquim Maria Cymbron
1 - António Telmo --- História Secreta de Portugal, Editorial Vega, Lisboa, 1977, p. 28.
2 - S. Tomás de Aquino, O.P. --- Summa Theologica, II-II, q. 40, a. 1.
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