Vestindo um uniforme português, Guilherme II com D. Carlos e D. Amélia (Lisboa, Março de 1905)
Poderá a muitos parecer paradoxal, mas a Alemanha que esta manhã (12 de
Novembro) se apresenta em Portugal, é no todo continental, uma potência
europeia bastante mais poderosa que aquela outra que há pouco mais de
cem anos chegou em festiva visita a Lisboa. Quando o Kaiser Guilherme II desembarcou no Cais das Colunas,
esperava-o o seu primo D. Carlos I, soberano de um país com quem as
possessões africanas alemãs delimitavam fronteiras comuns em África.
Lisboa engalanou-se a rigor e saiu à rua, apinhando-se a multidão para
ver passar D. Carlos e o seu poderoso convidado. Nem o povo agrediu
verbalmente aquele que aparentemente ameaçava a integridade do império
ultramarino português, nem os dois monarcas temeram desfilar entre
muitos milhares de portugueses.
Vivia-se há muito um período de paz continental numa Europa onde
Portugal podia contar com a interessada protecção britânica, potência
ciosa da segurança das rotas marítimas e consciente da vital posição
geográfica portuguesa. Já naquele alvorecer da Entente Cordiale
à qual D. Carlos I ofereceu os seus bons ofícios em Paris e Londres, o
nosso país enfrentava as cíclicas crises financeiras, surgindo como um
peão no gizar das alianças que uma década depois se digladiariam nos
campos de batalha da Flandres, Balcãs e leste europeu. Portugal valia
pela sua posição estratégica e sobretudo pelo seu precioso património
ultramarino, a isto acrescentando-se a teia de laços familiares que
uniam a Casa de Bragança às dinastias reinantes na Alemanha,
Grã-Bretanha, Bélgica, Itália, Áustria-Hungria, Espanha e Roménia.
Estilhaçado o sistema bismarckiano de segurança, no conjunto europeu o Kaiser
encontrava escolhos difíceis contornar, enfrentando o pesadelo da
aliança franco-russa e a declarada hostilidade inglesa pelo frenético
programa naval desenvolvido por Berlim. Pior ainda, os aliados da
Alemanha eram de duvidosa solidez, dados os evidentes problemas internos
do Império Austro-Húngaro, a óbvia decadência do Homem Doente da Europa - o Império Otomano - e a tradicional volatilidade da política externa da Itália.
A Alemanha, de facto o chamado motor europeu, é agora industrialmente tão poderosa como aquela que o Kaiser governava e ao invés dos tempos do II Reich,
pode contar com a resignada aquiescência de uma França em acentuado
declínio e de uma Grã-Bretanha rotineiramente avessa aos assuntos
continentais. O mundo não é o mesmo, já não existem impérios coloniais e
a queda do Muro de Berlim precipitou os acontecimentos. Com muito
dinheiro e produtos de exportação, a Alemanha do nosso tempo, sem um
exército outrora por todos temido, voltou a encontrar a sua parcial
unidade e tornou-se no principal actor da chamada União Europeia, ditando por direito e mérito próprio, as políticas que para o bem e para o mal o bloco europeu segue sem alternativa.
O actual regime colocou Portugal numa situação insustentável. Sem
possessões ultramarinas, sem um mercado interno minimamente relevante,
sem indústria, agricultura e poupanças, o país mergulhou no vórtice da
despesa feita com o único e exclusivo fim de satisfazer as amolecidas
clientelas eleitorais. A política faz-se pelo curtíssimo prazo e o país
soçobra no descontentamento de uma população nada esclarecida acerca das
realidades contratualizadas pelos seus agentes políticos. O desastre é
de tal monta que a chegada da Chanceler alemã - formatada pela
provinciana mentalidade comunista da felizmente extinta RDA -,
deve ser encarada de forma circunspecta, conscientes como deveríamos
estar acerca da nossa total dependência em relação à boa vontade das
autoridades alemãs, aliás bastante escrutinadas pela opinião pública do
seu país. Os irados comentadores que têm passado as últimas duas semanas
a vociferar dislates sem nexo, deveriam antes de tudo ter a perfeita
consciência acerca do regime que vigora na Alemanha unificada, sem
dúvida muito mais democrático, justo e confiável que aquele apresentado
pela ignominiosa República Portuguesa. Ainda esta tarde, o visionar do cada vez mais caquético Eixo do Mal (SIC), consistiu num passatempo bem ao nível de certos Big Shows,
sendo confrangedora a colecção de imbecilidades grasnadas por gente que
não tem a menor ideia daquilo que é um Estado e as correspondentes
regras que a diplomacia internacional há muito estabeleceu. Num Portugal
que já recebeu Ceausescu, Fidel Castro, Samora e um infindável número
de outras criaturas que para a história ficarão pelas piores razões,
somos diariamente forçados a escutar uma descarada campanha
que antes de tudo, tem como finalidade a desestabilização interna de um
regime que sem dúvida vive a sua pior hora. Isto, quando dos
portugueses se espera precisamente o oposto, dada a situação em que nos
colocaram aqueles que hoje mais se indignam, os conhecidos executores de
políticas, "direitos adquiridos", descarada incompetência e loucuras de
duas gerações.
Em 1905, o Kaiser - cujo país, além de inquietante vizinho africano,
era um importante credor de Portugal - foi bem recebido em Lisboa. A
própria rainha D. Amélia dele conseguiu a promessa de moderação na sua
próxima visita a Marrocos, então um ponto crucial no estabelecimento da
balança internacional de poderes e por si só capaz de desencadear a
guerra geral que todos temiam. Há 107 anos funcionou a boa diplomacia e
o cavalheirismo, apresentando-se aqui o soberano alemão como obediente
seguidor das regras da etiqueta e insistindo no exercício das suas
habilidades poliglotas, confirmou a presença de Portugal nos normais
circuitos diplomáticos das potências europeias.
Durante demasiado tempo a Alemanha despejou centos e centos de milhões
nos cofres portugueses, não se sabendo bem quais os montantes exactos e
qual o seu preciso destino. Os eleitores alemães disto têm a para nós
embaraçosa consciência. Ninguém espera que amanhã a Senhora Merkel
desembarque vestindo um qualquer uniforme de coronel honorário de um Regimento de Lanceiros
do exército português, ou sequer se digne a ostentar uma condecoração -
a propósito, já lhe conferiram alguma? - velha de séculos de passadas
glórias de um país setecentos anos anterior à Alemanha unificada em
1871. Não sabemos se tal como Kaiser normalmente fazia, a
Chanceler sabe exprimir-se noutra língua que não o alemão. Nesta época
de acelerada decadência europeia nada disso é muito importante,
exigindo-se apenas uma extrema prudência que como todos sabem, significa
precisamente o oposto daquilo que os histéricos comentadeiros hoje
descaradamente demonstram nas pantalhas dos noticiários: o medo.
Esta visita alemã, em muito supera aquelas outras protagonizadas por
Schmidt ou Kohl, meros dirigentes de um país então dividido, sob a
ameaça da força dos trinta mil panzers soviéticos estacionados
desde o Báltico a Praga, totalmente dependente da protecção
norte-americana e bem amarrado ao então ainda recente Eixo Paris-Bona.
Embora hoje devessemos estar a discutir outro assunto, não tenhamos medo e saibamos receber a Chanceler,
tal como há 107 magistralmente o país soube acolher o temperamental
imperador alemão. Infelizmente já não podemos contar com a impecável
competência de D. Carlos e de D. Amélia. Se vivêssemos noutro tipo de
regime, a Chanceler seria hoje conduzida por um ou dois empregados trajados de libré, apresentando os obrigatórios cumprimentos ao Chefe de Estado
"sem poder", calmamente a aguardando no seu escritório. Tal não
acontecerá, esperam-na transitórios e nervosos subalternos. Temos o que
temos e tal como a catastrófica crise é de única e exclusiva culpa deste
regime - dos bem conhecidos e inamovíveis gatunos, corruptos,
incompetentes e devoristas de serviço em Belém, S. Bento, bancos e
certas empresas -, o facto de não termos anfitriões à altura do momento e
capazes de manterem uma certa distância protocolar, é também da nossa
inteira responsabilidade. O "tu cá-tu lá" com que Merkel decerto
tratará Cavaco Silva e Passos Coelho,
seria completamente impossível no caso de contarmos outro tipo de
pessoas em Belém e sobretudo, uma outra instituição que a todos
orgulhosamente representasse. Com um pouco de desejável arrogância
dinástica postada ao cimo de uma escadaria de aparato, sempre se
salvariam as aparências.
Nuno Castelo-Branco
Fonte: Estado Sentido
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