A elevação de D. Manuel II ao trono foi tão abrupta, que não houve
tempo para se reunir em volta dele nenhum desses grupos que gravitam
perto dos príncipes herdeiros, com um vasto e ambicioso programa de
reformas destinado a mudar a feição do país. Por isso o seu reinado
ficou preso a uma classe política gasta, operando num ambiente
degradado. No entanto, apesar das circunstâncias que concorriam para
apagar a sua personalidade política, o jovem monarca revelou uma aguda
consciência ética e estratégica sobre o modo como devia desempenhar-se
da sua missão dinástica e salvar a monarquia. O primeiro acto da vontade
régia, pôr termo à experiência franquista e inaugurar a política da
“acalmação”, foi aquele que ficou marcado na memória histórica como a
feição característica do seu reinado, e constituiu sem dúvida um sinal
de fraqueza do regime, que o partido republicano estava preparado para
explorar. Se a actuação política de D. Manuel se tivesse reduzido a esta
substituição de uma política por outra, a sua herança histórica seria
um traço de inabilidade estratégica, embora firmado com uma vontade
forte. Mas foi muito mais longo o alcance do seu pensamento e da sua
acção.
A vontade de romper o cerco em que a política rotativista o
encarcerava foi um dos traços mais salientes da sua actuação enquanto
rei. Empenhado em cumprir os seus deveres de soberano católico, procurou
fazer-se o advogado das classes pobres junto do governo, e para isso
abriu uma ligação directa ao seu povo, correspondendo-se pessoalmente
com os dirigentes do movimento operário, Azedo Gneco e Aquiles
Monteverde, que lhe transmitiam as impressões recolhidas nos meios mais
indigentes. D. Manuel recolhia essas notas e transmitia-as aos seus
ministros, que sem pressas nem excesso de zelo iam adoptando algumas das
recomendações régias. Na opinião do rei, ao imperativo moral de
melhorar as condições de vida dos mais pobres, juntava-se o imperativo
político de subtrair os operários à influência da propaganda
republicana, explorando as divisões entre o movimento operário e o
partido republicano. Neste ponto mostrava uma apurada sensibilidade
política, pois o conflito entre as duas forças era profundo e veio a
rebentar com violência durante a vigência da república.
Mais ambicioso do que este plano, e procurando atingir o âmago das
fraquezas nacionais, foi o empenhado esforço com que D. Manuel se
debruçou sobre o vasto inquérito encomendado ao sociólogo francês Léon
Poinsard. Esta autêntica sumidade da escola de Frédéric le Play, que
iniciara os estudos de campo em sociologia, deslocou-se a Portugal em
1909, com a incumbência de procurar as razões profundas do estado de
decadência em que o país se atolara. Viajou de Norte a Sul, estudou os
mais variados meios sociais, familiarizou-se com os meios citadinos e
rurais, leu a história portuguesa e consultou a mais moderna
investigação etnográfica sobre o modo de vida material, cultural e
religioso de cada província. Apurou dados estatísticos e económicos,
comparou a divisão da propriedade nas várias regiões, e produziu no
final um diagnóstico tão profundo como até então não se conhecera, sobre
o estado social da nação portuguesa. O estudo de Léon Poinsard,
publicado em livro com o título de “Portugal Ignorado” (1912), ficou
concluído depois da mudança de regime, e leva no fim uma nota sobre os
últimos acontecimentos políticos.
O diagnóstico de Léon Poinsard revela causas históricas e sociais na
raiz dos problemas portugueses, vendo na instabilidade política e na
debilidade do tecido económico as consequências de um mal mais profundo –
a secular desorganização da sociedade, alicerçada numa estrutura
familiar sem grande consistência. Portugal é caracterizado como um país
que desde vários séculos atrás “se desviou do regimen normal do
trabalho”, por circunstâncias históricas como a expansão ultramarina , a
abundância de escravos ou a ociosidade das classes dominantes. “Poucas
nações teem passado por circumstancias desorganizadoras tão profundas e
contínuas como as que o povo portuguez tem sofrido”. Passando em revista
as soluções que os sucessivos governos adoptaram ao longo dos tempos
para contrariar a estagnação e decadência da nação portuguesa, mostra a
pouca eficácia e o curto alcance das políticas adoptadas, por não
atacarem as raízes do problema. E aponta as necessidades do país,
destacando, de todas elas, a prioridade maior: a reconstituição da
estrutura da família portuguesa.
No interior do livro deixa um apontamento sobre a atenção que o rei
D. Manuel dedicou áquele inquérito, não apenas acompanhando os passos da
investigação, mas definindo-lhe mesmo alguns dos objectivos.
Reconhecendo que o rei era mediocremente aconselhado e não tinha
experiência nem autoridade para dominar os partidos, impondo-lhes
reformas profundas, acrescenta que ele “era animado das melhores
intenções e do mais vehemente desejo de exercer inteligentemente e com
utilidade para o paiz as suas elevadas funcções de rei”, revelando
depois: “Tomara grande e directo interesse pelos nossos estudos sobre
Portugal e empenhara-se por conhecer-lhes prontamente o resultado.
Tivemos de responder minuciosamente a uma serie de perguntas redigidas
pelo seu proprio punho e que denotavam uma intelligencia muito viva e
uma precoce circunspecção de espírito pouco vulgar na sua idade”.
Dada a curta duração do reinado de D. Manuel, ficam-nos apenas
indícios como este, para conhecermos o que poderia ter sido o manuelismo
no seu período reinante. O outro manuelismo, que se definiu penosamente
no exílio, lutou durante 22 anos para se fazer ouvir pelos seus mais
zelosos servidores. Depois de 1910, as relações de D. Manuel com as suas
hostes formaram uma tortuosa trama, feita de desencontros entre os
ímpetos guerreiros dos segundos e o tranquilo planeamento político do
primeiro. O rei via o movimento monárquico como um agrupamento político
unido, pacífico e ordeiro, com um chefe nomeado por ele, e servido por
jornais que explicassem claramente a visão política do monarca. Mas os
seus fiéis não aceitavam impávidos os enxovalhos que a república lhes
infligia, respondiam ao golpismo republicano com monárquico golpismo, e
aclamavam um chefe, que não o escolhido pelo rei.
Os acontecimentos do 5 de Outubro douraram o perfil de Paiva Couceiro
com as cores do heroísmo, erguendo-o ao papel de supremo paladino da
monarquia, o único oficial que se batera com denodo no meio da cobardia
generalizada. Espontaneamente foi tomado por chefe dos monárquicos e
olhado como o comandante natural de qualquer movimento restaurador.
Couceiro tomou o lugar que a opinião pública lhe conferia e norteou o
movimento monárquico para a via da conspiração armada. Contrariava
assim a vontade política do rei exilado, que sempre afirmou pretender o
seu regresso quando fosse chamado ao trono pela vontade da nação,
livremente expressa. Deve notar-se que semelhante exigência parecia uma
abdicação. No regime que se vivia em Portugal, não se vislumbrava
possibilidade alguma de essa condição se reunir, pois a república não
mostrava o mais leve empenho em consultar a vontade da nação, ou em
permitir que esta se exprimisse por qualquer meio que fosse.
O inesperado triunfo da república mostrara que uma vitória pela força
das armas arrasta consigo, nos dias posteriores, uma onda de conversões
e adesões espontâneas, que ajudam a consolidar o terreno conquistado.
Por isso, a doutrina prevalecente no campo monárquico, mesmo entre
aqueles que mais acreditavam nas virtudes do sufrágio, como Paiva
Couceiro, era a de restaurar a monarquia e depois referendá-la.D. Manuel
via-se rodeado de uma hoste que se batia em seu nome sem o consultar.
Foram necessários anos de porfiados esforços para que D. Manuel
conseguisse imprimir a sua política ao movimento monárquico. As
incursões de 1911 e 1912 foram um sinal de impotência e desorganização
dos monárquicos, mas deram alento aos mais combativos, e provocaram nova
onda de repressão, que fez renascer das cinzas uma imprensa monárquica
mais aguerrida, pronta a enfrentar as vagas de apreensões e
empastelamentos.
Em 1914 publicavam-se em Lisboa 14 jornais monárquicos, 3 dos quais
dedicados à caricatura política. As arbitrariedades da governação
republicana davam abundante pasto à ironia e ao sarcasmo. Mas sentia-se a
necessidade de ir mais longe do que a simples publicação de comentários
mordazes aos actos do poder político. O principal conselheiro de D.
Manuel, Aires de Ornelas, vivendo em França, acompanhou o renascer do
sentimento monárquico sob a inspiração de Charles Maurras e da “Action
Française”. Admirador da obra de “saneamento intelectual” que se operava
em França, graças crítica dos princípios revolucionários, o antigo
ministro franquista pensou no modo de transferir para Portugal o
renascimento dos valores tradicionais. Reconhecendo nas ideias
revolucionárias que fermentavam em Portugal o figurino de origem
francesa, facilmente deduzia a necessidade de importar também a crítica
das mesmas. Em Abril de 1914 Aires de Ornelas publicava um opúsculo
intitulado “as doutrinas políticas de Charles Maurras”. Mas onde ele via
apenas a crítica dos princípios “revolucionários”, ou “republicanos”,
podia-se ver também uma condenação do parlamentarismo e da monarquia
constitucional. Tal consequência seria abundantemente explorada por um
movimento, que estava prestes a irromper na política portuguesa. O
Integralismo Lusitano, criado no mesmo ano, deu-se a conhecer ao público
com um vasto programa de crítica e reforma da mentalidade portuguesa.
Com um verbo acutilante, lançado em várias direcções, golpeava duramente
a política republicana e os seus antecedentes liberais, atacando-lhes
os alicerces filosóficos, científicos e sociológicos. O movimento
monárquico ganhava novo poder de atracção.
Em Agosto de 1916 começou a publicar-se o “Diário Nacional”, órgão da
Causa Monárquica. O manuelismo conseguia finalmente constituir-se em
partido, com um jornal matutino dirigido por Aires de Ornelas,
lugar-tenente de D. Manuel. A política nacional passava a ser
diariamente analisada pela perspectiva monárquica superiormente
orientada.
Mas em 1918 o movimento restauracionista voltou a mergulhar na via
conspirativa, à margem das instruções régias. O sidonismo, apoiando-se
nos monárquicos, deu-lhes a consciência da força que tinham. Largamente
representados no parlamento, no governo e no exército, não estavam
dispostos a deixar que o poder voltasse às mãos do republicanismo
radical. A Monarquia do Norte e a revolta de Monsanto, em Janeiro de
1919, foram o resultado desta actividade conspiratória, que terminou com
mais uma vitória da república, e a prisão ou o exílio dos mais activos
monárquicos.
Em meados de 1919, encontrando-se a Causa Monárquica privada dos seus
chefes, uma delegação do integralismo lusitano dirigiu-se a
Inglaterra, onde se encontrou com D. Manuel para lhe pedir que se
definisse com mais clareza sobre pontos de política e que imprimisse uma
nova direcção à Causa Monárquica. O rei recusou-se a tomar como seus os
princípios anti-liberais do integralismo, afirmando-se rei
constitucional, e confirmou o seu lugar-tenente Aires de Ornelas, que se
encontrava preso, na chefia da Causa. O integralismo lusitano,
reconhecendo a incompatibilidade entre as suas doutrinas e as do
constitucionalismo, de que o rei se mostrava inabalável fiador, decidiu
desligar-se da obediência a D. Manuel e procurou um entendimento com o
partido legitimista. A cisão não foi seguida por todos os integralistas.
Houve um grupo que continuou a reconhecer D. Manuel e a militar nas
fileiras da Causa Monárquica: João Ameal, Caetano Beirão, Alfredo
Pimenta, António Cabral, Luís Chaves, Fernando Campos e outros,
constituíram uma corrente autónoma, que veio a chamar-se Acção Realista,
e a publicar uma revista de doutrina política com o mesmo nome. O
integralismo mantinha assim um braço muito activo no interior da Causa
Monárquica, o que trouxe a esta um clima de intenso debate ideológico ao
longo dos anos 20. A juventude da Causa Monárquica lançou em 1925 a
“Portugália”, revista de “tradição, cultura e renovação nacional”,
dirigida por Fidelino de Figueiredo. Foi nas páginas desta revista que
se iniciou uma das mais importantes controvérsias doutrinárias entre
monárquicos. O Conselheiro Luís de Magalhães, procurando aplanar as
diferenças entre constitucionalistas e integralistas, publicou um artigo
sobre “o tradicionalismo da carta”, onde interpretava o documento
basilar da monarquia constitucional como uma adaptação moderna dos
princípios da monarquia tradicional, mantendo todas as prerrogativas do
poder régio e conservando a representação nacional dividida que como
nas antigas côrtes, pois os três estados encontravam-se representados
nas duas câmaras da monarquia constitucional: nobreza e clero na Câmara
dos Pares, Povo na Câmara dos Deputados. Este texto foi objecto de uma
rigorosa crítica por parte de Caetano Beirão, nas páginas da “Acção
Realista”, à qual Luís de Magalhães replicou com ampla argumentação, que
juntou no livro “Tradicionalismo e Constitucionalismo”. A obra de Luís
de Magalhães, em que Barrilaro Ruas via um dos mais altos expoentes do
tradicionalismo português, é decerto a mais completa compilação da
doutrina do manuelismo, e nela se pode avaliar a evolução de uma
corrente política que, começando como simples profissão de fidelidade ao
regime caído em 5 de Outubro, foi ganhando consistência e visão crítica
do período constitucional. A Causa Monárquica tinha, entretanto,
recebido instruções de D. Manuel para definir com maor precisão a sua
doutrina, procurando um acordo entre as suas correntes, mas mais uma vez
as controvérsias entre integralistas e constitucionais fizeram arrastar
a redacção do texto unificador, que esteve perto da conclusão, mas
estancou quando se discutia o último ponto. O manuelismo ficou assim
privado do seu manifesto definitivo, mas no caminho para o alcançar
produziu suficiente reflexão ideológica para enriquecer o património do
pensamento político português.
Carlos Bobone in Correio Real 8
publicado por Monarquia Lisboa em Real Associação de Lisboa
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