Cai
nas mãos da cambada. Defende-se com loucura, à espadeirada. Um Oficial
Superior da Armada (o Comandante Afonso de Cerqueira) olha para aquela
valentia quase sobrenatural, reconhece quem é e intervém. Exige aos seus
homens e à turba respeito pelo “herói de África”, conforme invoca.
“Este homem é um valente! Tem direito à nossa consideração!”. Vai ao
encontro de Costa Pinto; toma a iniciativa militarmente inusitada de ser
ele (Capitão de Fragata) a prestar continência ao Capitão; não aceita a
espada que o outro lhe estende. E um cavalheiro. Como aliás com Ayres
de Ornellas e João de Azevedo Coutinho, a quem também rende continência e
trata com a maior deferência.
Mas Costa Pinto desvaira. Parte a espada e espezinha-a no chão:
“Só serviu o Rei!”.
Demitido
de Oficial do Exército quando Tenente de Infantaria, em 1911, “a bem
dos superiores interesses da República”, conforme a folha oficial
(apesar de proposto em 1910 para a Torre e Espada, pelo seu desempenho
heróico em combate no Sul de Angola); readmitido em 1919 como Capitão,
por escassos dias, pela Junta Governativa do Reino, aquando da Monarquia
do Norte, e, óbvio, restituído à situação anterior logo de seguida. Foi
a sua brevíssima reaparição em uniforme: para combate. Apresentava-se
pois socialmente apenas com os apelidos, sem alusão a patente alguma. E
nunca requereu a reintegração, como por mais de uma vez lhe foi
oferecido no Estado Novo.
O Hastear da Bandeira em Monsanto, 1919
Todavia,
ficou para quase toda a gente, até morrer, “o Capitão Costa Pinto”,
dados o passado em África, a valentia que o celebrizou nos combates em
Monsanto e a atitude estóica e indomável com que suportou, dali até ao
Arsenal de Marinha, as vaias e múltiplas agressões do “povo unido”.
Depois de estar montado a cavalo 48 horas, quase sem comer, agarra-se a
uma metralhadora e cobre com ela, até esgotar as munições, a retirada
dos seus homens. Usa então a pistola e conta os tiros. Já estavam a
metros as forças da Marinha e, sobretudo, a massa ululante do “poder
popular” do tempo… Reservara o último tiro para ele. Senta-se num tronco
de árvore, aponta à têmpora e dispara. Mas, espantosamente, o
fulminante não percutiu!
Cai
nas mãos da cambada. Defende-se com loucura, à espadeirada. Um Oficial
Superior da Armada (o Comandante Afonso de Cerqueira) olha para aquela
valentia quase sobrenatural, reconhece quem é e intervém. Exige aos seus
homens e à turba respeito pelo “herói de África”, conforme invoca.
“Este homem é um valente! Tem direito à nossa consideração!”. Vai ao
encontro de Costa Pinto; toma a iniciativa militarmente inusitada de ser
ele (Capitão de Fragata) a prestar continência ao Capitão; não aceita a
espada que o outro lhe estende. E um cavalheiro. Como aliás com Ayres
de Ornellas e João de Azevedo Coutinho, a quem também rende continência e
trata com a maior deferência.
Mas
Costa Pinto desvaira. Parte a espada e espezinha-a no chão:-”Só serviu o
Rei!”. O poder popular (a alfurja, os rufiões de navalha e os vadios, a
roupa suja e o hálito de bagaço) excita-se e grita-lhe: -”Viva a
República!”. Numa temeridade absurda, ele atira-se ao murro e a pontapé a
toda essa gente: -”Viva a Monarquia, seus filhos da puta”. Ficou
enlouquecido de fúria. Não ouve apelos. Parece que, exímio jogador de
“savate”, dava pontapés monumentais. Por fim foi dominado, é claro. Por
um bom bocado o Comandante Afonso de Cerqueira perde o controlo da
situação. O prisioneiro jaz por terra, espancado e golpeado na cabeça,
na cara, no peito e nas costas. Cerqueira logra por fim, com forte risco
para si próprio, entregá-lo a uma escolta de 1 Cabo da Armada e mais 3
Praças de baionetas caladas, mandando que o levem para o Arsenal, com
ordens rigorosas para o defenderem até lá chegar.
Já
na Baixa, num destroço e com a farda esfarrapada, em sinal de desprezo o
Capitão cuspia sobre a multidão enfurecida o sangue que lhe enchia a
boca, insensível aos apelos da pequena escolta, ela própria apavorada
apesar das suas espingardas de baionetas caladas. Pedia-lhe o Cabo, que
tentava abraçá-lo para o cobrir das agressões e que ia levando pancada
pelo meio:
-”Ó senhor Capitão, ao menos não olhe assim para eles !” Ele redarguia-lhe, todo a escorrer sangue:
-”E como é que vocemecê, que é um homem de bem como estou a ver quer que eu olhe para esta canalha ?!”
O bom do Cabo tinha razão. As miradas do Capitão reflectiam um desprezo sem descrição, que destrambelhava a turba.
A multidão berrava-lhe: - “Viva a República!”. Ele, rouquíssimo, respondia:
- “Viva a Monarquia!”. Por fim, já não logrando emitir um som de voz, distribuía amplos “manguitos” para todos os lados…
Conseguiram
enfim metê-lo no Arsenal, onde os Oficiais de Marinha presentes,
republicanos segundo ele me disse, o resguardaram todavia com a maior
urbanidade. Mas houve necessidade de transferi-lo logo para bordo de um
navio de guerra surto no Tejo, porque a massa queria invadir o Arsenal e
matá-lo. O Oficial de Dia ofereceu-lhe hospitalidade na câmara de
bordo. Ele recusou, quis da sopa do rancho e comeu uma dose
inacreditável, própria de quem estava mesmo esfaimado. Perante o olhar
atónito da marinhagem, engoliu umas após outras 3 terrinas da pesada
sopa! Depois pediu uma enxerga, deixou-se cair sem sequer tirar as
botas, sem querer receber curativos, e dormiu 48 horas! Respeitaram-lhe o
sono. E alguém, apiedado, pôs-lhe um cobertor em cima. Quando
acordou, passaram-no então para a Penintenciária, onde será tratado
como preso comum (fato às riscas e barrete), conforme aconteceu
igualmente com muitos outros Oficiais monárquicos que, também
revoltosos, para ali tinham ido. A sua chegada ao estabelecimento,
sujíssimo, roto, ainda com as feridas por tratar, cheio de sangue
coalhado, provocou a emoção consternada de um antigo contemporâneo da
Escola do Exército, que na ocasião respondia pela Penitenciária:
- “Ó Costa Pinto!… mas em que estado o vejo!”
Sempre provocador, desdenhando o sinal de simpatia, o Capitão respondeu asperamente, enquanto lhe acudiam às feridas:
- “Você vê-me assim porque eu fui fiel ao Rei e perdi! Você também jurou fidelidade, mas ganhou porque traiu!”
Costa
Pinto foi preso e quase linchado. Colocado num navio foi enviado para a
Madeira, onde ficou detido no Presídio Militar de Lazareto, tendo sido
transferido em Setembro para a Cadeia Nacional de Lisboa.
Libertado
dois anos depois, sobreviveu a vender latas de azeite à comissão e
depois seguros, o que lhe permitiu restabelecer contactos um pouco por
todo o país, voltando a envolver-se politicamente nas eleições de 29 de
Janeiro de 1922.
O
trabalho na companhia Vacuum Oil devolveu-lhe a estabilidade económica,
tendo, no início da Segunda Guerra Mundial, intercedido junto de
Oliveira Salazar no sentido de ser permitido o regresso a da rainha D.
Amélia a Portugal, de quem foi secretário pessoal entre 1945 e 1951.
Marcello
Caetano, atribuiu-lhe a medalha de serviços relevantes em 1946, quando
já tinha sido reintegrado na carreira militar com o posto de capitão…Uma
nota de beleza e de humanidade: quando terminado o seu tempo de prisão,
o Capitão não descansou enquanto não localizou o Cabo que, com tanto
brio e coragem, o salvara. Achou indigno gratificá-lo. Optou por se
responsabilizar a pagar-lhe os estudos de uma filha, menina de 7 anos,
até ela querer. E assim aconteceu, já ela sendo mulher.
Boa
conhecedora das suas idiossincrasias perante o Poder constituído e da
sua contundente mordacidade, era raro a Rainha incumbi-lo de, como
Secretário, se desempenhar de qualquer diligência com alguém da elite
política portuguesa, mesmo muitos anos depois, já em plena “Situação”.
Era, sobretudo, “o Aio”: uma companhia e uma assessoria. E alguém que a
fazia sentir-se segura e protegida, quase como se um filho fosse.
O
Capitão Júlio da Costa Pinto, Secretário e Aio, evitava chegar-se a
Salazar; pelo contrário, mantinha-se à distância, parcimonioso, numa
atitude militar que nunca perdeu. “Se alguém precisar de mim, que me
chame. Eu não tenho nada que lá ir”, costumava dizer. Não gostava de
Salazar: achava-o muito vaidoso na conhecida modéstia; entendia-o
preocupado acima de tudo em aguentar um regime transitório, sem pensar
no futuro; e era de uma ironia cortante quando referia os gerarcas da
Situação.
Morte da Rainha D. Amélia
Em
3 de Agosto de 1951, o Capitão Costa Pinto escreve à Dra. Domitilla de
Carvalho (do Gabinete de Salazar). Esta escrevera à Rainha D. Amélia em
22 de Julho anterior, sem notícia de maior, a julgar pela simplicíssima
resposta do Capitão Costa Pinto, por ordem de D. Amélia.
A
Rainha agradecia e mandava acrescentar: “Sua Majestade tem a maior
admiração pelo Sr. Presidente do Conselho, Sr. Dr. Salazar, de quem tem
tido provas de admiração sentida”.
Na Torre do Tombo, é este o último texto que, embora ditado e indirecto, se encontra da Rainha para Salazar.
D.
Amélia sobrevive em grande fraqueza e cansaço depois de 4 de Outubro de
1951, com intermitências. Tem por vezes curtas alucinações, durante as
quais “vê” o seu Aio coberto de sangue que lhe “brota” da cara aos
borbotões e, confundindo-o com o Príncipe Real D. Luís Filipe no
massacre de l de Fevereiro de 1908, agita-se numa grande aflição e
pavor: — “Meu querido Luís! Meu querido filho! Estás todo cheio de
sangue! O que é que te aconteceu? ! O que foi que te fizeram?!” A
solicitude dos presentes procura o mais possível acalmá-la e furtá-la ao
reviver sangrento da caçada, como D. Manuel II chamou à chacina. Só o
Capitão Costa Pinto consegue melhores resultados. Fala-lhe brandamente.
Aos poucos lhe faz ver que não está sangrando, que ele não é o Príncipe
Real, passaram muitos anos, e que agora foi tudo um mau sonho de
momento, só isso. Ela pára, arfante, vai-se situando de novo na
realidade do tempo, mas até a crise passar chora sempre, de novo e com
desespero, o filho e o marido, como se estivesse vivendo a tarde
fatídica do Regicídio. De uma vez, com o Aio agarrando-lhe as mãos,
saltam lágrimas em torrente dos olhos dela, algumas caindo nas costas
das mãos do Capitão Costa Pinto. E ele, contava-me quase sem voz, beijou
nas suas próprias mãos as lágrimas da Rainha.
Algum
pessoal francês da Casa lida mal com essas crises, introduzindo nelas
uma beatice estafante. Convencem a velha Senhora de que as “aparições”
do filho assassinado são mensagens do “Além”, a pedir que rezem por ele .
Esforçam a Rainha a uma sequência interminável de terços por alma do
Príncipe Real: “pelo meu filho queridíssimo”, como ela dizia.O Capitão
Costa Pinto depara com estas práticas e põe-lhes termo, não sem alguma
dificuldade.
Finalmente a Rainha recobra, para morrer, toda a sua lucidez, como
jornais a descrevem.
jornais a descrevem.
Em 26 de Outubro de 1951, tratamento de dois diários importantes à agonia e morte da Rainha. Uma comparação:
Em
“O Século”, dessa data, na 1ª página, ao alto, a 4 colunas, com 2
fotografias (uma das quais, o último retrato da Rainha), inclui-se a
descrição dos seus últimos momentos:
Quote:
“Reclinada
nos almofadões, quase sem um gemido: «Sofro tanto!» “Depois, deixando
transparecer no rosto uma calma infinita”: «Deus está comigo!». Assim
murmurava num português suavíssimo. “Eram quase 9h. e 30m. Nos olhos da
sr° D. Amélia havia uma lucidez perfeita”. Instantes depois, abrangendo
com o olhar os portugueses e franceses que a cercavam, disse, sempre em
português: «Adeus…».
Da morte até ao dia 31 passaram 17.000 pessoas no Castelo de Bellevue, para apresentação de condolências.
No
mesmo dia, o Comunicado oficial no “Diário da Manhã”, órgão do Governo,
em primeira página, sem fotografia, apenas diz e a 1 coluna.
Quote:
Da Presidência do Conselho recebemos a seguinte comunicação: «Tendo falecido esta manhã em Versailles Sua Majestade
a Senhora D. Amélia de Orleans e Bragança, o Governo resolveu que
durante três dias os edifícios públicos mantenham bandeira a meia-haste e
que o corpo seja oportunamente transferido para Lisboa a fim de ser
sepultado no Panteão de S.Vicente, realizando-se então funerais
nacionais, para o que vai ser expedido o respectivo, decreto».
Mal teve conhecimento do passamento, diz “O Século”, o Chefe do Protocolo francês, De La Chauvinière,
foi ao castelo de Bellevue apresentar condolências em nome do
Presidente Auriol e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Robert
Schuman. Genebrier, Prefeito de Seine-et-Oise, representando o
Presidente do Conselho e os restantes membros do Governo Francês,
apresentou, também, os pêsames aos familiares da Rainha. Ela não queria
flores nem coroas no seu funeral em Versailles, pois as achava caras
demais num tempo de sacrifícios. Mas isso não evitou que de Portugal
chegasse, de avião, um ramo de flores malvas e brancas, dispostas em
cruz, colhidas por Salazar(?…) nos jardins da Pena, segundo dizia a
imprensa francesa. Seria provavelmente de camélias, flores que D. Amélia
outrora adorava contemplar vivas e frescas nos jardins do Palácio. E
ficava gratíssima a que com elas a presenteava.
O
seu fiel Aio, Capitão Júlio da Costa Pinto, tinha o requinte de lhe
levar camélias da Pena sempre que podia. E até morrer, na sua casa da
Rua do Século,99, em Lisboa, punha, como tanta vez vi, imprescindíveis
camélias junto do último retrato da Rainha, velhinha, onde se podia ler,
pela mão já muitíssimo trémula: “Ao Júlio da Costa Pinto, em affectuosa
lembrança da sua sempre tão constante e tão leal dedicação. Dona Amélia
Rainha”.
Capitão Júlio da Costa Pinto e a Rainha D. Amélia
Quando
um dia, muitos anos depois (finais da decada de 60), o Capitão se
fartou de uma vida para ele já sem razão, tentou arranjar munições para a
sua velha pistola “Savage”, mas não conseguiu. Tomou então uma dose
enorme de barbitúricos. Deixou três vivas mensagens: na cabeceira o
retrato da Rainha, com a habitual jarrinha de camélias. Voltada e
pousada sobre o peito, uma moldura com a foto de D. Manuel II, também
dedicada.
Numa
cadeira ao lado, a bandeira azul e branca em que queria ser
amortalhado. E palavra nenhuma, pois lá achou que não era preciso.
Para
sua desgraça, quase 24 horas depois ainda a governanta o apanhou vivo; e
levaram-no para um hospital, onde, todo entubado mas lúcido, teve dias
de penosa agonia. O Duque de Bragança demonstrava-lhe carinho, e pelo
menos um dos Príncipes o visitava constantemente, conforme me noticiava
D. Duarte Nuno. Eu, em Lourenço Marques,
nada pude fazer, excepto transcrever para uma folha de papel a Cena VI
do V Acto do “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand, mandá-la pelo
correio e pedir a alguém que, com urgência, lha lesse da minha parte. É a
cena em que o irredutível combatente do Ideal, ferido e cambaleante no
convento da sua amada Roxane, desembainha a espada e enlouquecido
desafia o vazio, enquanto proclama que, nesse mesmo dia, a pluma do seu
feltro varrerá largamente o Céu azul, pois transporta consigo,
puríssimo, o seu “panache”… Foi-me garantido que percebeu e agradeceu.
…Ele
saudou os seus Reis mortos, para se despedir. Mas não teve, como
Mousinho, a sorte de conseguir fazer logo a “meia volta” e marchar para
onde queria.
Júlio da Costa Pinto morreu em 1969, aos 86 anos.
Fonte:
“Salazar e a Rainha”, Fernando Amaro Monteiro
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