A revolução nacional de 28 de Maio representou para muitos a
esperança na restauração da monarquia. A chegada ao poder de António de
Oliveira Salazar, um já ilustre católico conservador, representou a
certeza – Em vez disso, durante quarenta anos Salazar limitou-se a
fazer esperar. Transformou os monárquicos nos penitentes que ainda são
hoje.
28 de Maio
A única realidade política que saíu derrotada em 28 de maio de 1926 foi o
jacobinismo dos partidos republicanos. Não foi a república. A
consciência religiosa da maior parte dos portugueses tinha sido
violentada durante a I República. Os militares procuraram trazer para o
Governo doPaís aqueles católicos que entretanto se tinham vindo a
organizar. A hierarquia da Igreja acedeu ao poder.
A essência da organização política da ”oposição à I República não cabia
aos monárquicos enquanto tais. O único ”partido” para além dos partidos
republicanos, era o Centro Católico – ”Organização dos católicos que,
em obediência aos desejos da Santa Sé, sacrificam de momento as suas
reivindicações políticas, mormente no que respeita à questão do regime, e
se unem para conquistar e fazer reconhecer as liberdades e os direitos
da Igreja. ”O Centro Católico aceitou a legitimidade do regime
republicano. Foram chamados para o Governo políticos do Episcopado e
entre eles António de Oliveira Salazar. Estava tudo farto dos partidos e
dos políticos que tinham protagonizado até então a desgraçada
instabilidade governativa que se sabe. A Igreja Católica, que não era
propriamente um partido, foi reconhecida como factor primordial de
pacificação social.
Mais tarde, em 1930, foi criada a União Nacional, que veio congregar
monárquicos e republicanos, não se admitindo quaiquer grupos ou facções
neste novo ”partido único”. O novo Estado baseava-se no compromisso
entre várias forças. Haveria um pluralismo funcionalizado pela ”paz
pública e o bem da nação”. Os monárquicos eram convidados a participar
no esforço da Restauração nacional, sendo também convidados a prescindir
do seu sonho de Restauração real durante aqueles primeiros anos
difíceis da reconstrução do País. Ainda assim, os monárquicos
conseguiram ter o privilégio único de se manterem autonomizados
legalmente através da Causa Monárquica. Em termos práticos esta
autonomia nunca deu nada: foi a célebre ”causa efeito”. Com a união
Nacional e a Constituição de 33, a II República fica institucionalizada.
O regime mantém-se republicano, consagra-se o autoritarismo de Chefe de
Governo (e não de partido único como pretendiam os camisas azuis de
Rolão Preto), sendo a acção governativa estabelecida em cooperação com a
Igreja.
O Monárquico de Coração
Os colaboradores mais próximos de Salazar dizem que ele era um
”monárquico de coração”. Éuma daquelas frases que se repete muitas
vezes, mas não se sabe muito bem que quer dizer. Implicará que há
monárquicos de cabeça? E Salazar, seria mais ou menos monárquico, por
ser só de ”do coração”? Entende-se melhor que Salazar tenha sido um
”monárquico por formação e tradição”. Em privado, ter-se-á declarado
”monárquico por temperamento e educação”, o que vem dar ao mesmo. Não
era de certeza absoluta um fanático, isso não. E nem foi preciso uma
intuição excepcional para salazar perceber a debilidade do princípio
monárquico como valor político activo. Sentia que ”as novas gerações
cultas” eram indiferentes ao problema do regime. Tinha consagrado uma
constituição, tornara-se um estadista que percebera a premência de
agradar a todos. Sentiu que conseguia aguentar os monárquicos sem lhes
dar muito, utilizando as suas divisões internas. A morte de D. manuel
II, em 1932, terá dado o toque de finados para o monarquismo de Salazar.
D. Manuel II morria sem descendentes e Salazar não reconhecia as
pretensões de D. Duarte Nuno. A generalidade dos monárquicos contionuou
mais trinta anos à espera, acreditando na possibilidade de converter aos
poucos as estruturas do Estado Novo em instituições monárquicas.
Em 1932, com a morte de D. Manuel II, Salazar quis convencer os
monárquicos que o ideal restauracionista, apesar de muito respeitável,
era puro romance e fantasia ”Trabalhemos dentro das instituições
actuais, sem romantismo ou fantasias. Não nos esqueçamos de que a
ditadura se fez contra o espírito partidário, mas não apenas contra o
espírito partidário republicano” Manuel Braga da Cruz define este
posicionamento como ”centrismo católico, que ”subordina a questão das
formas de governo e de regime à prioridade da questão moral e do
problema político nacional”.
O Momento Oportuno
Os únicos que parecem ter compreendido o alcance da consagração deste
hibridismo foram, primeiro algusn integralistas e, depois, os
nacionais-sindicalistas arregimentados em torno da figura de Rolão
Preto. Salazar conseguiu calar estas oposições e protestos disciplinando
a quase totalidade dos monárquicos sob a a alçada uniformizante da
União nacional. Henrique Barrilaro Ruas fala, a este propósito, de um
verdadeiro pacto tácito entre a Causa Monárquica e Salazar. Os
monárquicos teriam de esperar pelo ”momento oportuno”, o qual acabaria
por vir a ser ditado pela única pessoa que o poderia fazer: Salazar. Os
que teimaram em duvidar do pacto ou os que não estavam para pactos
(Almeida Braga, Rolão Preto, Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Pequito
Rebelo, entre outros) ficaram no ”exílio”.
Consta que Salazar não acreditava no carisma de D. Duarte Nuno. Mas a
verdadeira razão que o teria levado a recusar a presença da família real
em Portugal seria não lhe ter agradado a ideia de criar tão cedo um
clima propício à Restauração. Era sempre muito cedo… Mas o que é certo é
que acabou por acontecer, mesmo contra a vontade de Salzar, dando novo
alento aos monárquicos alinhados. Para Henrique Barrilaro Ruas houve uma
boa ocasião de restaurar a monarquia nos centenários, em 1940. Haveria
um ambiente pró-monárquico e as veleidades individualistas estavam ainda
para chegar. Mas é só com a morte de Carmona, em 1951, que toda a gente
sentiu que ”chegou o momento”. Foi o delírio nas hostes, mas eis que
surge Marcello Caetano, que inegavelmente estragou a festa preparada por
Mário de Figueiredo. No seu célebre ”discurso de Coimbra” arrumou a
euforia restauracionista. Para Marcello o ”regime que está” é forte e
estável: Portugal nutria um forte sentimento republicano; os colonos
liberais não veriam com bons olhos uma Restauração da Monarquia; e, por
último, o pretendente não estaria decididamente à altura de instaurar um
novo regime e enfrentar as dificuldades inerentes a esse movimento. O
primeiro argumento aduzido deverá ter soado muito bem a Salazar. Para
além disto, ainda veio Santos Costa acrescentar surpreendentemente que
os militares também não estariam preparados para aceitar uma mudança
dessas (a doutrinação não teria sido muito eficaz nesses meios…)
Apaziguamento
Poderia especular-se que Salazar rejeitou, neste e noutros momentos, um
seu profundo ideal, em prol de uma estabilidade garantida, que ficaria
alienada por um chocante reviver de instituições monárquicas. Em 51, com
grande sentido prático, preferiu mais uma vez não arriscar. Seguiu a
política do apaziguamento, saindo-se com uma daquelas frases brilhantes:
”Estudemos tudo, mas não nos dividamos em nada”. Não é para levar a
sério. A divisão foi precisamente aquilo que Salazar pretendeu.
Paralelamente ao discurso de Marcello, Mário de Figueiredo proferiu um
outro, na mesma altura, , que também ficou célebre. Dizia o contrário
das teses defendidas por Marcello Caetano. A Causa entende que este
discurso mantem viva a intenção de Salazar vir a restaurar a Monarquia.
Oficializavam-se dois discursos antagónicos para contentar as duas
facções. A maçonaria de Bissaia Barreto também ficou satisfeita com o
que tinha dito Marcello Caetano. Era isto o ”apaziguamento”. Uma das
palavras-chave que permite compreender a estratégia política preferida
de Salazar durante quarenta anos.
Esta luta por manter ”a família unida” continuou sempre. Lá ia dando uma
no cravo outra na ferradura. Numa entrevista, Marcello Caetano deu uma
na ferradura ao dizer que a questão do regime estava resolvida. Salazar
não hesitou em desmenti-lo. Foi sempre acenando à distância com a
cenoura da Restauração, ”a solução monárquica deves ser deixada em
suspenso, como uma possibilidade futura, longínqua e indefinida” Salazar
pode passar à história como um brilhantíssimo empata. Quando a ruptura
do ”pacto tácito” estava finalmente para ser um facto consumado,
deflagra a guerra em África, Em 1958, D. Duarte Nuno chegou a ter
preparada uma proclamação ao País (redigida por Rolão Preto, Sousa
Tavares e Amaro Monteiro – todos monárquicos), em que declara o seu
apoio a uma revolta militar de esquerdas e direitas contra Salazar, com a
condição de em caso de vitória se realizar um plebiscito sobre a forma
do regime. O lugar-tenente (a liaison de Salazar) como é óbvio, não
deixou tal proclamação ser assinada. também alguns monárquicos, em 1961,
tomam posição em relação a Angola, defendendo a igualdade potencial
entre pretos e brancos no que diz respeito à participação na gestão dos
territórios ultramarinos. São partidários de uma política de integração,
expressando algumas reflexões num manifesto intitulado ” Uma Posição
Portuguesa”. O manifesto redigido por Barrilaro Ruas foi bastante bem
recebido por muita gente: desde alguma esquerda civilizada passando pela
extrema direita de Paulo Guedes da Silva e até pela própria PIDE de
Angola. Nessa mesma altura, Pequito Rebelo proclama que a ”Causa deverá
limitar a sua acção no sentido da mobilização geral dos seus recursos em
prol da dramática questão do Ultramar” Devia pensar (e não era o
único) que a guerra do Ultramar se resolvia num instante. Com a
primavera Marcellista começou um longo Inverno restauracionista. Apesar
de tudo, não poucos monárquicos, como por exemplo o embaixador António
Séves (lugar-tenente de D. Duarte Nuno), ficaram convencidos que se
Salazar não tivesse caído da cadeira, teria acabado por restaurar a
monarquia…
Foi melhor assim?
Hoje em dia poder-se-á pensar que foi melhor assim. Se a monarquia
tivesse sido restaurada graças a Salazar, provavelmente teria voltado a
cair mais tarde, com um qualquer 25 de Abril. Para Barrilaro Ruas ”uma
restauração salazarista teria dado muito mau resultado A partir de 61 já
não é possível sustentar um regime na vontade de um só homem. Mesmo em
51 já seria complicado. O ideal teria sido em 1940, quando não existia
ainda espiríto individualista. Também se pode pensar o contrário. Não
seria impossível imaginar uma transição para a democracia, tal como
aconteceu em Espanha. Podia ser que Salazar, Cansado de poder, quisesse
aproveitar para se retirar, prestando um último serviço: a Restauração
há tanto tempo prometida. Podia ter feito isso em 1958… Assim, talvez
não viesse a acontecer o 25 de Abril. São possíveis várias reconstruções
do presente através da correcção do passado, mas a realidade é que as
possibilidades de ver restaurada a Monarquia ainda neste século foram
talvez penhoradas pela crença num homem que nunca mexeu um dedo por
reviver no Reino de Portugal.
Franz-Paul Langhans, secretário particular de Salazar conta uma história
que demonstra bem como Salazar associava a Monarquia a mera poesia.
«Não sei a que propósito surgiu oportunidade única para se falar na
bandeira nacional e em suas cores e arranjos heráldicos. Salazar, no seu
tempo de colégio de Viseu, fez uma poesia descrevendo o simbolismo e
significado da velha e liberal bandeira azul e branca.Lembrei ter tomado
conhecimento de um estudo feito pelo então operoso heraldista Afonso de
Ornelas. ”O que pretende Afonso de Ornelas?” perguntou Salazar. ”É
modificar a bandeira? É um assunto algo transcendente e traz muitos
casos complicados… E dúvidas … E, num ponto de vista político, tem
também os seus quês”. Salazar fez uma pausa, como quem estava em
meditação mais profunda e, depois, atirou-se-nos com esta: ”Mudar a
bandeira?… nem pensar nisso… Era oferecer um símbolo à oposição…”»
[In ''Salazar visto pelos próximos (1946-1968)'', Bertrand Editora]
*Agradeço a colaboração do doutor Henrique Barrilaro Ruas, com quem
tive o prazer de conversar sobre estes assuntos, no dia 25 de Fevereiro
de 1993
- Rui Pereira de Melo, in Revista Kapa, Maio de 1993
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