S. Miguel Arcanjo, padroeiro de Portugal
«Sabe-se que os Christãos dos primeiros tempos olhavam aquelle santo como um dos génios tutelares da medicina, e é pois natural que a designação de S. Miguel succedesse à de Endovellico.»
José Leite de Vasconcelos em Religiões da Lusitânia Vol. II.
Arcanjo S. Miguel, escultura portuguesa oriunda de uma oficina coimbrã do séc. XV. |
Reza a lenda que D. Afonso Henriques, antes de defrontar os infiéis em
terras escalabitanas, durante o ano de 1147, terá invocado a divina
protecção e auxílio de S. Miguel Arcanjo que, respondendo às preces do
monarca português, fez descer dos céus o seu punho alado, derrotando as
forças sarracenas. Segundo a tradição, D. Afonso Henriques, como forma
de agradecimento pela intercessão divina do Celestial Condestável,
consagrou-lhe o seu jovem reino, confiando-lhe a sua protecção.
A devoção do primeiro rei de Portugal pelo Arcanjo S. Miguel ser-lhe-ia
tal que o teria levado à criação da lendária Ordem Equestre e Militar de
São Miguel da Ala, também conhecida por Ordem de São Miguel da Ala,
Real Ordem de São Miguel da Ala, ou Ordem da Ala, mais tarde reactivada
ou recriada pelos partidários do rei D. Miguel. Polémicas aparte, é hoje
tomado como certo que o Arcanjo S. Miguel terá sido o primeiro
padroeiro de Portugal, até que durante o reinado de D. João I, por
influência do seu casamento com D. Filipa de Lencastre, se adoptou S.
Jorge como orago nacional. Só após a Restauração de 1640, a Dinastia de
Bragança decidiu coroar a Nossa Senhora da Conceição como rainha e
patrona de Portugal, afastando-se desta forma a hipótese de regressarmos
ao patronato do nosso primordial protector.
Celebrado liturgicamente a 29 de Setembro, S. Miguel Arcanjo é venerado
pelas três religiões do livro, judaísmo, cristianismo e islamismo,
estando o seu culto largamente disseminado na Europa, onde encontramos o
seu caminho geográfico-esotérico que liga em linha recta o santuário do
Mont Saint-Michel (Norte de França), à Sacra di San Michele (Norte de
Itália) e às grutas de S. Michele de Gargano (Sul de Itália). Contudo, é
em Portugal que o culto a S. Miguel Arcanjo nos surge aparentemente
mais enraizado, fruto de uma ligação ancestral de origem pré-cristã.
Ora, conforme é sobejamente sabido e discutido, Portugal é um dos locais
na Europa onde a religiosidade é transcendentalmente vivida de uma
forma bastante heterodoxa e espiritual, encerrando em si os mistérios
esquecidos de um imaginário divino, albergado num inconsciente colectivo
herdado numa época ou tempo histórico pré-fundação. Assim, é com alguma
naturalidade que assistimos a uma harmónica simbiose entre o paganismo e
o cristianismo que aqui soube adaptar-se ao cultos ancestrais das
nossas gentes. Esta é no fundo a perspectiva defendida nos estudos
seminais de José Leite de Vasconcelos em obras como Religiões da Lusitânia,
onde o autor avançava com a possibilidade de Endovélico, principal
divindade do panteão lusitano, ter adoptado a forma de S. Miguel, face à
impossibilidade deste poder ser reconvertido no Deus cristão.
Baseado nesta interpretação, poderemos encontrar um estreito diálogo
político-cultural de carácter trans-religioso entre o pré-Portugal e
Portugal, permitindo-nos conhecer um pouco melhor as nossas raízes e
matrizes filosófico-culturais e histórico-espirituais. É por isso
importante sabermos distinguir, interpretar e preservar os símbolos da
nossa cultura, pois estes formam no seu conjunto a linguagem das nossas
verdades superiores.
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