Confirma Sousa Bastos que a Procissão do Corpo de Deus, saída da Sé na data da comemoração era a mais afamada de
Lisboa, onde se incorporavam os próprios Soberanos de Portugal, o que
se atesta nesta fotografia do provisoriamente Derradeiro Deles. Sintoma
da nossa decadência é a preparação minuciosa de festejos estar hoje
reservada a a alarvidades como o Carnaval, ou a festejos dignos mas com
cada vez mais reduzida reflexão te(le)ológica, como os dos Santos
Populares. Esta que hoje teria lugar começava um mês antes, com as
principais artérias da Capital ostentando as janelas e varandas com
colchas e demais panos preciosos dependurados, à maneira do que ainda se
faz em Espanha nos momentos festivos e hábito que de cá desapareceu,
talvez por não restar muito para celebração. A relevância pública ia a
pormenores como a mudança de fardamento dos militares, que iniciavam o
uso da calça branca estival nesse dia. Era o evento mais interclassista,
com popularíssima afluência, incorporação das elites do Reino, Família
Real e Pares à cabeça; e todo o Cabido e Irmandades, marcando a presença
das Basílicas e Referências de Culto. Como também transversal em
matéria de etnias, fazendo desfilar desde oito dias antes o Estado de
São Jorge, composto pela Comunidade Negra tornada Alfacinha. Tudo sob a
invocação do Santo nomeado, a da vitória em Aljubarrota, cujo intérprete
vinha do Castelo para baixo, após ser içado por guindastes similares
aos que faziam montar os cavaleiros e armaduras respectivas no célebre
filme de Orson Welles.
Tempos
em que o sentimento comunitário era mais do que o pretexto para as
risadas escarninhas, de hoje, salvo quando são substituídas pelos apelos
a "exercício de cidadania", gritos de impotência e esgares
manipulatórios que semeiam cada vez maior aversão.
Paulo Cunha Porto
Jovens do Restelo
HISTÓRIA
Procissão do Corpo de Deus na Baixa de Lisboa
A
solenidade conhecida pelo nome de Corpus Christi (em Portugal designada
Corpo de Deus) ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, só ganha
lugar de relevo na Liturgia em 1246, quando o bispo de Liège (Bélgica)
instituiu a festa, na sua diocese. Esta primeira “festa oficial” do
Corpus Christi surge em consequência das revelações recebidas pela Beata
Juliana de Retinne. Pela bula Transiturus (1264), o Papa Urbano IV (que
antes fora bispo de Liège) estendeu a festa a toda a Igreja, como
solenidade de adoração da Sagrada Eucaristia.
A
solenidade do Corpus Christi já era celebrada em Portugal no século
XIII, desde o reinado de D. Afonso III. Era, à época, uma festa de
adoração, não envolvendo a procissão pelas ruas.
O
rito da procissão foi instituído pelo Papa João XXII (1317). Na igreja
dos Mártires, em Lisboa, manteve-se, no decurso dos séculos (e apesar
das inovações havidas), o rito da festa com exposição do Santíssimo,
Procissão, Vésperas solenes e Sermão.
As
Câmaras Municipais e as Corporações de Artes e Ofícios acolheram a
devota iniciativa, pelo que, a breve trecho, a Procissão veio a
tornar-se a mais vistosa e interessante de todas, merecendo o título de
“Procissão das Procissões”.
Constituída
por cortejo cívico e corporativo, com carros alegóricos, figuras
pitorescas, danças, momices e cenas de autos sacramentais, a procissão
demorava horas a caminhar, vindo a constituir tanto um evento religioso
como um evento social.
As
Câmaras, determinando instruções régias, publicaram Regimentos ou
regulamentos da Procissão, indicando os usos e os costumes, os modos de
vestir, as obrigações de cada Corporação, as danças (entre elas a
judenga, ou dança dos judeus), as bandeiras e pendões, as coreografias
(anjinhos, folias, figuras sacras...) e o lugar do Clero. Raras foram as
sedes concelhias que não tiveram Regimento da Festa, mas as memórias
mais expressivas acerca da Procissão ficaram em Coimbra, no Porto e em
Lisboa.
Celebrada
em Lisboa, a festa do Corpo de Deus incluiu a Procissão, pela primeira
vez, em 1389. Eram os tempos da consolidação da autonomia face a Castela
e do bom ambiente criado pelas vitórias bélicas de Nuno Álvares e da
influência cultural britânica (a ponto de S. Jorge - devoção inglesa,
vencedor do Mal, do Dragão - ser considerado Padroeiro de Portugal).
Por
isso, à solenidade do Corpus Christi juntou-se a festa de S. Jorge.
Desta junção, resultou a magnificência da Procissão da capital. A festa
chegou a atingir surpreendente grandiosidade no tempo de D. João V,
incorporando a Procissão incorporava, desde logo, as associações
socioprofissionais e também as delegações das diversas Ordens Religiosas
de Lisboa (Agostinhos, Beneditinos, Dominicanos, Franciscanos, Ordem de
Cristo...) e militares. No cortejo, avultava a figura de S. Jorge a
cavalo e a Serpe, ou dragão infernal (do tipo chinês, locomovido por
figurantes), contra o qual S. Jorge lutava.
Havia
paragens para representação das famas ou glórias de S. Jorge; e também
para uma série de danças. Representavam-se ainda as tradicionais
“estações” do Santíssimo, como hoje ainda se faz na procissão de
Sevilha.
No
final do cortejo, vinha o pálio, a cujas varas pegavam os mais altos
dignitários da Corte e da Câmara, sempre representada por toda a
Vereação. Sob o palio, deslocava-se o Bispo de Lisboa, ostentando a
custódia com o Santíssimo Sacramento. Era ladeado pelo Rei, ou Chefe de
Estado, ou dignitário similar.
Dado
curioso a salientar é o da tentação de realização de atentados contra
as figuras régias, durante a procissão do “Corpus Christi”. Um deles,
contra a pessoa de D. João IV. Sobrevivendo o monarca ao acto, a sua
esposa (D. Luísa de Gusmão) promoveu a construção do Convento dos
Carmelitas, na Baixa Lisboeta. Edificado no exacto lugar do falhado
crime, foi chamado do “Corpus Christi”.
Outro atentado famoso deu-se contra D. Manuel II, perto da Igreja da Vitória, quando a procissão passava na rua do Ouro.
Mas
a legislação de 1910, proibindo os dias santos da Igreja (excepto o
Natal e o dia 1 de Janeiro), interrompeu o culto público, embora, nas
igrejas, continuassem a ser celebradas missas solenes; e solenes
pontificiais nas Sés.
Em
2003, a Procissão do Corpo de Deus voltou a percorrer as ruas da Baixa,
onde outrora se cumpria. A solenidade, presidida pelo
Cardeal-Patriarca, teve começo com a celebração da Missa no Largo da
Igreja de São Domingos, no logradouro do palácio da Independência. O
término da procissão deu-se na Rua Garrett, diante da Basílica dos
Mártires, com a Bênção do Santíssimo Sacramento. Estiveram presentes, na
Missa e procissão, mais de cinco mil fiéis - entre os quais autoridades
civis e militares.
Iniciamos
hoje a publicação de quatro conjuntos de fotografias da Procissão do
Corpo de Deus que se realizou em Lisboa no passado dia 7 de Junho.
A
primeira série de imagens refere-se ao ambiente que antecedeu o início
da Procissão. As restantes fotografias acompanham o percurso desde a Sé
Patriarcal até ao Largo do Município.
Apontamento histórico: Departamento da Comunicação e da Cultura do Patriarcado de Lisboa.
Sem comentários:
Enviar um comentário