Foi apenas quem conduziu o país à bancarrota e ao maior desprestígio internacional, que é "o que fica" para a História
No tom laudatório que é da praxe nos elogios fúnebres, o ideólogo de
serviço do defunto Governo e do seu primeiro, veio à praça pública
defender os méritos daquela governação, agora valentemente repudiada
pelo povo, em expressivas eleições legislativas.
Embora mereçam a minha simpatia os que defendem, ao jeito do Robin dos
Bosques, os desgraçados, e reconheça que é de uma rara nobreza elogiar
os vencidos, confesso que não pude deixar de sorrir ao ler o obituário,
não obstante o seu tom pesaroso. Aliás, já me divertira com o encenado
drama da comunicação pós-eleitoral do derrotado chefe do Governo, que
mais me pareceu uma medíocre comédia. A grandiloquente peça de oratória
do demissionário primeiro-ministro, decerto mais preocupado com a sua
própria imagem pessoal do que com o interesse da população, que
certamente dispensava uma tão extensa alegação de auto-exaltação, era
caricata, se não fosse tão verdadeiramente expressiva do que foi o seu
desgoverno.
Embora respeitável a opinião do cronista, parece que o seu panegírico
do infeliz político agora apeado é, na realidade, uma crítica à vontade
soberana do povo, cujo veredicto é tanto mais censurável quanto
louvável era o agora deposto governante. Na sua óptica, se o povo não
peca por ignorante e injusto, peca pelo menos por ingénuo, por ter
acreditado naqueles que triunfaram nas eleições e que, segundo o
articulista, tinham ao seu dispor a comunicação social. São desculpas de
mau perdedor que, talvez, relevem alguma saudade do "centralismo
democrático" de outras eras. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades,
mas nem sempre as mentalidades acompanham essas mudanças...
Tem de facto graça o estilo barroco do bacoco texto encomiástico,
palpável na adjectivação magnânima do cadáver político do querido
líder: a convicção reformista deste é "notável"; o progresso que
introduziu na modernização e na simplificação administrativa é
"impressionante"; as suas reformas foram "profundas", como "profundo" é o
seu espírito de modernização (outra vez, à falta de melhor...). Quem,
sem o conhecer, lesse a citada nota necrológica poderia pensar que o
país lhe deve o caminho marítimo para a Índia, a descoberta do Brasil, o
Mosteiro da Batalha, Os Lusíadas, as pontes sobre o Tejo e o
Douro ou qualquer outro feito histórico. Na realidade, foi apenas quem
conduziu o país à bancarrota e ao maior desprestígio internacional, que
é "o que fica" para a História de Portugal, já que na mundial não terá
qualquer cabimento. Não é fácil ganhar eleições, mas é muito mais
difícil saber perdê-las com a dignidade que só a humildade e a
veracidade conferem.
Mas é certeiro o articulista, quando afirma que "a despenalização do
aborto, a agilização do divórcio e a legalização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo ficarão a marcar" o consulado agora findo. De
facto, foi contra a vida e a família que mais se destacou o Governo
demissionário, que em poucos anos conseguiu a proeza de lograr um
extraordinário retrocesso civilizacional, tanto mais questionável
quanto realizado por pressão de grupelhos sem representatividade
nacional e à revelia da vontade popular, porque até mesmo o resultado
do referendo sobre o aborto não foi vinculativo, nem expressivo de uma
inequívoca determinação nesse sentido.
Se foram de facto, como o dito jurista pretende, reformas de carácter
civilizacional, que legitimidade tinha o anterior poder para as
realizar, sem um mandato explícito dos eleitores?! Não é verdade que,
para uma reforma constitucional, que é de menor importância do que uma
mudança civilizacional, se exige uma maioria qualificada? Será portanto
necessário que a nova maioria reveja essas reformas que, ao contrário
do que se pretende, não são indeléveis - alguns estados dos EUA
revogaram, depois de consulta popular, a autorização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, por exemplo - e oportunamente as corrija, para
que a sociedade portuguesa recupere alguma da liberdade e da decência
perdidas.
"Em Portugal, onde por via de regra as modas chegam quando lá fora
já deixaram de o ser, ainda não veio ninguém a público - que eu saiba -
defender a impunidade absoluta ou relativa do aborto [...] e nisso tem a
intelectualidade portuguesa dado uma prova exuberante do seu fino
quilate", escreveu, em 1935, o dr. Alfredo Ary dos Santos, em O Crime de Aborto.
Hoje, a ufania desse advogado e publicista já não tem cabimento,
porque o provincianismo de alguns levou a trazer cá para dentro tudo o
que de pior se faz lá fora. Mas, como então escreveu aquele precursor
da defesa do direito à vida no nosso país, "temos pois - sincera e
gostosamente o dizemos - que seguir na retaguarda desse movimento e
assim estar na vanguarda do progresso, visto que o progresso, em
ciência moral e política, não é necessariamente tudo quanto seja novo,
senão tudo quanto seja verdadeiro".
P. Gonçalo Portocarrero de Almada in Público (19-06-2011)
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