Na próxima Quarta-feira, 20 de
Abril, comemoramos o centenário de uma das maiores guerras culturais da
Primeira República: a Lei da Separação entre a Igreja e o Estado.
Símbolo histórico da laicidade em Portugal, contribuiu mais do que
qualquer outro acontecimento para o erro de transformar a laicidade em
questão religiosa, para citar o insuspeito Fernando Rosas. Se por
laicidade entendermos a neutralidade do Estado em matéria de religião, a
"separação" republicana foi antes uma perseguição oficial à religião
católica. Por outras palavras, a Lei da separação entre a Igreja e o
Estado foi, em muitos aspectos, uma lei de submissão da Igreja ao
Estado.
O fim confesso das suas duas centenas de artigos - reactualizando o
velho programa do Estado moderno, identificado por Tocqueville, de
esvaziar as comunidades intermédias entre os indivíduos e o poder
central - era destituir a Igreja de personalidade jurídica,
convertendo-a em mera associação de direito privado. Em consequência,
todos os bens das dioceses e das paróquias foram nacionalizados.
(Recorde-se que os bens das ordens religiosas já tinham sido
nacionalizados em Outubro de 1910, quando estas foram extintas, o que
significa que em meio ano a Igreja portuguesa perdeu todo o património.)
Para sustentar o clero, foi instituída uma pensão a requerer ao
Ministério da Justiça, o que perpetuava a tradição regalista de tratar
os padres como funcionários públicos. Ao mesmo tempo, proibiam-se
quaisquer dádivas dos fiéis para a manutenção do culto ou dos clérigos,
uma vez que a Igreja não podia ser proprietária. A Lei impunha também
grandes limitações ao culto público, exigindo que as autoridades civis
regulamentassem missas, procissões e até o toque dos sinos. Finalmente,
criava as famigeradas comissões cultuais para administrar as
paróquias, comissões nomeadas pelo poder local e das quais o respectivo
pároco estava excluído, o que na prática entregaria aos peões do
Partido Republicano a vida religiosa dos católicos.
Em suma, a Lei era "uma declaração de guerra à Igreja", como lhe chamou
Vasco Pulido Valente, e a Igreja reagiu em conformidade. No mês
seguinte, o Papa Pio X publicou uma encíclica e o episcopado português
um protesto colectivo em que condenavam sem apelo as pensões do Estado e
as comissões cultuais. Paradoxalmente, ou talvez não, os dois pontos
que a Igreja recusava em absoluto eram aqueles que permitiriam a sua
sobrevivência administrativa e económica no novo regime. O choque era
frontal. Em resposta, o Governo puniu com o desterro todos os bispos do
Continente. Em 1912, à excepção da Madeira e dos Açores, não havia em
Portugal uma única diocese com bispo residente. E o culto católico,
embora raramente suprimido, tornara-se ilegal para a Igreja ou para o
Estado na quase totalidade das paróquias, umas porque tinham comissão
cultual, outras porque não tinham.
A Igreja, no entanto, venceu a guerra. Nas cerca de 4 mil paróquias do
país, só em 300, sobretudo de Lisboa e do Sul, se nomearam comissões
cultuais, muitas vezes sem entrar em funções, e só cerca de 10% dos
padres, maioritariamente nas mesmas zonas, aceitaram a pensão
governamental, sendo punidos com a suspensão a divinis, ou
seja, com a interdição canónica de celebrar o culto. A Lei da Separação
tornar-se-ia mesmo um dos grandes pomos de discórdia entre os
republicanos, com os moderados a insistirem na sua revisão, mas só em
1918, no consulado de Sidónio Pais, seria revista e só em 1940, pela
Concordata, revogada.
É verdade que a Lei da Separação "abriu um espaço novo de liberdade
para a Igreja", como disse o Papa Bento XVI quando nos visitou há um
ano, mas essa liberdade foi conquistada pelo clero português ao recusar a
dependência económica e administrativa do Estado. Foi a luta da Igreja
contra a tutela estatal que fez a verdadeira separação. A laicidade
entre nós deve tanto à ideologia republicana como à resistência
católica a uma lei iníqua.
Pedro Picoito, Crónicas da Renascença 17/4/2011
Fonte: Centenário da República
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