Como é que se faz com que um filme do qual se conhece a história, porque é
baseado em factos reais (duplamente reais), e não envolve acção capaz de cativar
em permanência a atenção do espectador, seja mais que um objecto interessante e
se transforme numa grande, embora não genial, obra de cinema? Capaz de ganhar quatro Oscars, incluindo o de melhor
filme?
Resposta: Coloca-se uma máquina de impecável produção em andamento,
adiciona-se um argumento bem construído, uma realização segura e eficaz e, acima
de tudo, tem-se, como ingredientes principais, excelentes interpretes e em
grande forma. O Discurso do Rei reúne tudo isto e, por isso, não pode ser
confundido com um filme simples e banal. Podia ser um telefilme de bom nível, ao
bom velho estilo da BBC, mas é mais que isso. Graças a Colin Firth, Geoffrey
Rush, Helena Bonham Carter e Derek Jacobi, entre outros.
O segredo deste filme é não ter segredos. Não há mistérios por revelar,
portas fechadas que não mostram tudo, sussuros inaudíveis, twist de último
minutos. Está tudo à vista.
Sabemos que a personagem de Firth, o Duque de York será o Rei Jorge VI,
depois da morte do pai e após a renúncia do irmão, o rei Eduardo III, que
preferiu casar com a norte-americana Wallis Simpson, duplamente divorciada.
Sabemos que o homem é gago e enfrentou o problema com o auxílio de um terapeuta
da fala, interpretado por Rush. Sabemos que a gaguez surgiu por algo que
aconteceu quando tinha 4 ou 5 anos de idade. Mas o curioso é que não ficamos
ansiosos por saber o que efectivamente a provocou.
Ficamos apenas com algumas
ideias, como a distância emocional e a severidade do rei para com o jovem
príncipe. Vislumbres de resposta mas sem confirmação. Não é preciso. Não é para
isso que estamos ali.
Acabamos por resistir à curiosidade porque damos
por nós ao lado do príncipe, a lutar, com ele, contra a gaguez, a fazer os
exercícios físicos e vocais, a combater os medos que lhe tolhem as cordas
vocais.
Torcemos para que os discursos lhe corram de feição.
Sentimos que, afinal, um rei não passa de um homem normal, com problemas,
deficiências, com dúvidas, conflitos interiores. E às vezes a fazer amigos de
forma inesperada.
Colin Firth e Geoffrey Rush são grandes actores, por isso é normal não nos
espantarmos com a qualidade dos seus desempenhos, mas isso não impede a
necessidade de sublinhar a forma contida e vulnerável da prestação de Firth, que
transpira emoções em cada cena. Pode dizer-se que está como peixe em água, à
vontade na pele de um aristocrata inglês, mas nem isso pode diminuir a qualidade
do trabalho. Fazer um nobre britânico frio, insensível e apenas interessado em
apostas e fumar charutos é simples. Dar-lhe dimensão humana, uma dualidade de
sentimentos, de conflitos morais e uma intensa vulnerabilidade mesmo junto do
homem comum, como na cena do discurso em Wembley, não é para qualquer um. O Discurso do Rei passa por
aqui. Ainda bem.
Fonte: Aventar
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