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A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO

A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO
Autor: Nuno A. G. Bandeira

Tradutor

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Iª REPÚBLICA PORTUGUESA E A IGREJA CATÓLICA

Comissão Diocesana de Cultura
Aveiro, 10 de Dezembro de 2010

Para encetar as minhas palavras sobre as relações entre o Governo da República Portuguesa e a Igreja Católica nos princípios do século XX, cito as palavras que o papa Bento XVI proferiu logo no primeiro discurso, aquando da sua visita apostólica ao nosso país de 11 a 14 de Maio passado (Bento XVI em Portugal – Discursos e Homilias, Lisboa, Paulinas, 2010, pgs. 18-19): - «Situada na história, a Igreja está aberta a colaborar com quem não marginaliza nem privatiza a essencial consideração do sentido humano da vida. Não se trata de um confronto ético entre um sistema laico e um sistema religioso, mas de uma questão de sentido à qual se entrega a própria liberdade. O que divide é o valor dado à problemática do sentido e a sua implicação na vida pública. A viragem republicana, operada há cem anos em Portugal, abriu, na distinção entre a Igreja e o Estado, um espaço novo de liberdade para a Igreja, que as duas Concordatas de 1940 e 2004 formalizariam, em contextos culturais e perspectivas eclesiais bem demarcados por rápida mudança. Os sofrimentos causados pelas mutações foram enfrentados geralmente com coragem. Viver na pluralidade de sistemas de valores e de quadros éticos exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do Cristianismo para reforçar a qualidade do testemunho até à santidade, inventar caminhos de missão até à radicalidade do martírio.»
Os desencontros patentes e as hostilidades abertas entre o Estado Português e a Igreja Católica ficaram na história como uma marca relevante da Iª República. Sucederam-se conflitos profundos, períodos persecutórios, desterros injustos, agressões arbitrárias e até assassínios criminosos de que os membros do clero foram vítimas. Todavia, a República não pode ser acusada de ter iniciado os ataques à Igreja, porque tais conflitos já vinham sendo travados por diversos sectores nas últimas dezenas de anos da Monarquia Liberal; tinham acontecido expulsões de religiosas mesmo beneméritas, cenas de anticlericalismo feroz, ataques violentos, Governos e mesmo monarcas a retirarem à Igreja a sua influência na sociedade civil, etc. Não era fácil a sobrevivência da Igreja num sistema assumidamente regalista.
         Efectivamente, nessa altura, sentia-se que chegara ao último grau da escala a propaganda constante, às claras e às ocultas, não só contra a Monarquia mas também contra as instituições da Igreja Católica, que eram acusadas de serem o sustentáculo do Regime e o maior entrave ao progresso e à modernização económica e social do País. Fora escolhida propositadamente a Companhia de Jesus como um dos alvos preferidos; inventaram-se boatos terríveis e mentiras hediondas que inundaram cidades e aldeias. Nesses anos de insegurança que, no dizer do próprio rei D. Carlos, a Monarquia já não tinha monárquicos (cit. por Fialho de Almeida em Saibam Quantos, Lisboa, 1912, pg. 113), e o soberano se encontrava isolado na sua disposição de governar, a Franco-Maçonaria trabalhava minando as Cortes e a aristocracia numa obra sobretudo intelectual, enquanto a Carbonária, fundada em 1898 como prolongamento daquela para uma acção indirecta mas violenta, colocava-se rapidamente ao alcance das camadas médias e inferiores. Assim, sem as sociedades secretas, não é fácil de explicar a luta contra a Igreja nestes anos de decadência da Monarquia e no tempo da República democrática. «A Maçonaria é a mãe da Revolução» – diria Machado dos Santos (A Revolução Portuguesa, Lisboa, 1919, pg. 16).
Tornou-se propício aos republicanos um incidente ocorrido no Porto em 17 de Fevereiro de 1901, qual foi o caso de D. Rosa Calmón, filha do dr. José Calmón, cônsul do Brasil no Porto, que, aos vinte e dois anos de idade, vendo-se contrariada pelos familiares no desejo de prosseguir a vida conventual, se prestou sincera ou dissimuladamente a um insensato rapto pelas onze horas da manhã, à saída missa dominical na igreja da Trindade; era um disparatado modo de entrar no claustro. O pai, que a acompanhava, ao presenciar o inesperado acontecimento, logo lançou o alarme; juntaram-se muitos populares que, com vivas à liberdade e morras à reacção, impediram que o automóvel seguisse viagem. Os órgãos  de comunicação escrita e os agentes anti-católicos entraram em violenta campanha contra as ordens e congregações religiosas, incitando a turba a toda a sorte de desmandos; o rastilho ateou o fogo e surgiu, de norte a sul do país um feroz movimento, com insultos e calúnias; desrespeitaram-se sacerdotes, apedrejaram-se colégios e recolhimentos, invadiram-se redacções de jornais católicos e violaram-se residências particulares.
Em vez de se impor, o Governo mandou encerrar algumas casas e pretendeu regular a questão dos institutos religiosos. Nesta sequência, o dr. Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, com o decreto de 18 de Abril de 1901, permitiu a instalação das ordens e congregações religiosas – salvo os jesuítas – desde que apenas se dedicassem à instrução, beneficência, propagação da fé e civilização no Ultramar, mas obrigando-as a estatutos oficialmente aprovados e a não terem clausura, nem noviciado, nem votos; o ministro, embora sem o querer, proporcionou um grande impulso a todo aquele dinamismo persecutório. Em carta colectiva, datada de 23 de Abril e entregue pessoalmente a el-rei D. Carlos, o Episcopado expôs claramente a doutrina da Igreja – o que não evitou os estatutos, conforme exigia o decreto. Em tal ambiente, no Outono de 1901, por iniciativa da Carbonária, continuaram as manifestações de protesto em todas as grandes cidades, nas quais participaram mais de cem mil pessoas, exigindo aos governantes o cumprimento das leis anteriores sobre as associações religiosas – o que, por pouco, levaria ao rompimento de relações diplomáticas com o Vaticano.
Outro pretexto do reacendimento da questão religiosa foi a reabertura do seminário de Beja pelo novo bispo D. Sebastião Leite de Vasconcelos, nomeado em 1907 – o qual havia sido encerrado no ano anterior por causa de uma insubordinação de alunos; os padres José Maria Ançã e Manuel Ançã, naturais de Ílhavo, professores exonerados desse instituto, não foram readmitidos e protestaram junto do Governo; mas o valoroso bispo, benemérito fundador das ‘Oficinas de S. José’ no Porto, as quais tinham como principal objectivo a formação profissional e a educação moral e religiosa de menores sem família, manteve-se firme no meio dos desacatos da populaça e das calúnias a seu respeito, apesar de o próprio Governo o ter exautorado.
 Por seu lado, os partidos monárquicos, enfraquecidos e divididos, já não se julgavam capazes de obstar ao Republicanismo e ao avanço das novas ideias políticas. D. Carlos, com uma vigorosa personalidade, foi quem de facto procurou resistir; como última cartada, ante a fraqueza dos seus, viu-se então obrigado pelas circunstâncias a ir para a ditadura em 1907, sob a responsabilidade do conselheiro João Franco.
Entretanto, sucediam-se os discursos no Parlamento e os ataques na imprensa e nas ruas, incitando à revolta, ao regicídio, à república; eram os monárquicos descontentes, os republicanos manietados, os grupos políticos oficialmente suspensos, as sociedades secretas em grande actividade. Reclamava-se a aplicação das leis do marquês de Pombal e de Aguiar para a extinção das ordens e congregações religiosas da Igreja Católica; procurava-se mentalizar a opinião pública em ordem à necessária eliminação de D. Carlos. E a mancha negra do regicídio iria ficar nas páginas da história portuguesa, a assinalar lugubremente o dia 01 de Fevereiro de 1908. Deixou escrito Raul Brandão que «D. Carlos não foi morto pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades» (Memórias, I – digitalização e revisão de Deolinda Rodrigues Cabrera – 1998); e o jornalista e político aveirense Homem Christo havia de reconhecer mais tarde: - «D. Carlos tinha defeitos, mas tinha carácter; não o insultariam impunemente; não beijaria a mão que o esbofeteasse; não deixaria cair na lama o espírito de ordem e de autoridade» (Monarchicos e Republicanos, Porto, 1928, pg. 89).
Pretendendo também criar uma frente juvenil de doutrinação cristã e de defesa no campo da comunicação escrita, os alunos do Seminário de Viseu fundaram a ‘Liga de Propaganda da Boa Imprensa’. Com a finalidade de se alargar a outros Seminários, o seu presidente, António de Oliveira Salazar, que apenas contava a idade de dezanove anos incompletos, endereçou uma carta a António Eduardo da Silva Cravo, então estudante no Seminário do Porto e presidente da sua Academia, futuro barão de S. João do Loureiro (Oliveira de Azeméis); datada de 15 de Março de 1908, pouco tempo depois do regicídio, é conservada pela família deste. Em certo passo, aí se lê: - «Hoje exige-se a conjugação de esforços para que, isolados, não sejamos esmagados pela onda avassaladora da desordem e da desmoralização. […] É mísera a condição da nossa Pátria e gravemente ameaçada a divina Igreja de Jesus Cristo. A seus ministros e a todos os seus filhos incumbe a ponderosa obrigação de trabalhar em defesa da Religião e na salvação da nossa querida Pátria. […] À imprensa se atribuem, e com razão, a maior parte destes males; à má, entenda-se, que não à boa, que relevantíssimos serviços tem prestado no campo católico.»
Nos finais da Monarquia, no tempo do reinado de D. Manuel II, o nosso aveirense D. João Evangelista de Lima Vidal foi escolhido para bispo da Diocese de Angola e Congo; tendo recebido a ordem episcopal em 29 de Junho de 1909, não demorou muito tempo sem ir desempenhar a sua nova acção pastoral. Escreveu ele mais tarde, recordando em evocação pessoal (Correio do Vouga, jornal de Aveiro, 05-11-1949, ‘Evocações’): - «Quando, em 01 de Agosto de 1909, embarquei para Angola no navio ‘Portugal’, a respiração religiosa do país era tão asfixiante, tão soturna, tão abafada, que, largando o vapor do cais, eu tive a impressão ao mesmo tempo aliviadora e consternante de que saía de um vespeiro ou do interior de um vulcão e, passada a barra, me punha ao largo das suas picadas ou das suas lavas… e quimdi uscimmo a rivedere le stelle, como escreveu Dante Aliguieri (La Divina Commedia, Inferno, canto XXXIV, 139). E, por mais precário que fosse este juízo, por muito que tivesse de auto-ilusão ou de engano, ele contribuiu no entanto para dar à viagem uma tinta suave, como se o barco, a cada nó que avançasse, a cada volta da sua hélice, mais nos fosse afastando da fogueira que ameaçava abrasar-nos.»
De facto, em 17 de Abril de 1910, D. Manuel Correia de Bastos Pina, bispo-conde de Coimbra, escrevendo para Luanda ao bispo Lima Vidal, confirmaria: - «Pelos jornais do Continente que aí receberá, terá visto o que por cá vai com os Ançãs e o bispo de Beja, e a guerra que se está fazendo, por parte de dissidentes e republicanos, a bispos, padres, jesuítas e a Roma; e as providências mais que regalistas, que a este respeito tem publicado o Governo. Dou-lhe, pois, muitos parabéns por ter ido ser bispo lá para fora, onde vejo que vai muito bem e que é muito feliz… e Deus queira que assim continue sempre e com a saúde que vai gozando» (Arquivo Diocesano de Aveiro – original).
O último Gabinete da Monarquia, constituído por el-rei D. Manuel II em 26 de Junho de 1910 sob a presidência do dr. António Teixeira de Sousa, médico, deputado e par do Reino, não reagiu contra a desordem e, mesmo contra a vontade do monarca, mandou dissolver algumas comunidades religiosas, para agradar aos liberais, esperando-se o agravamento da perseguição, no caso de os acontecimentos precipitarem a República.
Na própria véspera do triunfo republicano, andando os ânimos extremamente exaltados e sem controlo, aconteceu que um grupo de energúmenos assaltou, em Lisboa, o colégio de S. Vicente de Paulo e criminosamente assassinou dois sacerdotes lazaristas. Um deles foi o padre Bernardino Barros Gomes, de setenta e um anos de idade, bacharel em ciências, engenheiro florestal, botânico, silvicultor, geógrafo e publicista, que, depois de viúvo, seguiu o sacerdócio; deixou uma vasta obra literária, capaz de fazer a reputação de qualquer homem de ciência, em qualquer país.
De tal modo, de degrau em degrau, a revolução de 05 de Outubro de 1910 não foi uma batalha em que a vitória se decidisse entre duas facções, mas o resultado natural de um pleito já dirimido ou de um problema já solucionado. Tudo estava pronto para a mudança política; naquele dia final, pouco foi preciso para que a multi-secular Monarquia ruísse, quando a incipiente República chegava.
E o que imediatamente dominou o pensamento de diversas pessoas? Corresponderá à verdade o que Raul Brandão anotou? Leia-se o que ele escreveu em 09 de Outubro (Memórias – II, digitalização e revisão de Ernestina de Sousa Coelho – 2002, pg. 20): - «Oh, meu Deus; nestas ocasiões é que eu queria ver por dentro estes homens lívidos e com um sorriso estampado na cara, que sobem as escadas dos Ministérios para aderirem à República! É este e aquele, os que estão ameaçados de perderem os seus lugares, as altas situações, o poder. Os tipos não importam – o que importa é o fantasma que transparece atrás da figura; o que importa é o monólogo interior, as verdadeiras palavras que não se pronunciam, o debate que não tem fim, o que nestas ocasiões de crise ruge lá dentro sem cessar. Escutá-los a todos! Possuir o dom mágico de ouvir através das paredes e dos corpos!… Toda a noite, toda a noite de 05 de Outubro, quantos perguntaram, ansiosos: Quem vai vencer? Onde é o meu lugar?… Bem me importam a mim as tragédias e as mortes!… Interesses, ambição, medo, tantos fantasmas que nem eu supunha existirem e que levantam a cabeça!… Não há nada que chegue a estes momentos históricos em que o fundo dos fundos se agita e remexe, para cada um se avaliar e saber o que vale uma alma… E o desfile segue – o desfile dos tipos que sobem as escadarias dos Ministérios, dos que descem as escadarias dos Ministérios, uns já com o olhar de donos, mas vacilantes ainda, sem poderem acreditar na realidade, outros com um sorriso estampado que lhes dói. Estamos todos lívidos, por fora e por dentro…»
No dia seguinte à revolução, aconteceu um episódio de lamentar. O cardeal-patriarca resignatário, D. José Sebastião de Almeida Neto, pretendendo sair para o convento franciscano de Vilariño (Tuy – Espanha), foi preso em Albarraque, quando ia a caminho da estação ferroviária de Cacém. Foi levado ao dr. Afonso Costa, ministro da Justiça e dos Cultos, sendo interrogado no Terreiro do Paço, em Lisboa. O mesmo governante logo ordenou que os sacerdotes que andassem na rua fossem presos para ‘evitar abusos’ dos populares; o Limoeiro e o Arsenal da Marinha encheram-se completamente. Ficou como um incidente próprio de dias revolucionários.
O novo Regime, embora definindo-se como não ofensivo à Igreja Católica e propalando-se defensor de todas as liberdades, anunciava-se na prática, desde o princípio, como hostil à Religião, caminhando para uma situação de antagonismo; restava saber até que ponto iriam os seus extremismos – o que se viria a demonstrar pela ulterior legislação. É certo que «a legislação monárquica identificava o Estado com a Igreja Católica, o que estava consagrado na própria Carta Constitucional» – escreveu o prof. António José Telo (Primeira República – Do Sonho à Realidade – 2010, pg.184), continuando: – «O registo de nascimentos, casamentos e óbitos era feito pelos sacerdotes e não era permitido o divórcio. A separação efectiva entre casais existia em número significativo, o que era tolerado pela sociedade, desde que não fosse consagrado na lei. Os bispos tinham assento na Câmara dos Pares e o clero recebia diferentes tipos de remunerações e uma reforma do Estado, embora a sua principal fonte de rendimento proviesse dos crentes.» E isto, como estava, também não agradava a muitos católicos responsáveis.
A rápida ascensão do dr. Afonso Costa e do Partido Democrático passaria a ligar-se directamente à investida formal contra a Igreja. Então, sucederam-se em catadupa os decretos e as leis. Em 08 de Outubro, repôs-se em vigor a lei pombalina de 1759, que deu por «desnaturalizados, proscritos e exterminados» os jesuítas, expulsando-os de Portugal e dos seus domínios para neles não mais poderem entrar, e também reassumiu-se o diploma de Joaquim António de Aguiar que extinguiu todos os mosteiros, conventos, colégios, hospícios e residências de todas as ordens e congregações religiosas, integrando-se os seus bens no património do Estado, dissolvendo as suas comunidades e obrigando os seus membros a viverem como seculares; a revista ‘A Illustração Portugueza’ publicou uma reportagem fotográfica sobre a prisão de jesuítas, onde se mostrou como estes eram tratados por criminosos com humilhação desumana, sendo-lhes mesmo medido o crânio para serem facilmente reconhecidos se, no futuro, tivessem a veleidade audaciosa de pretenderem regressar a Portugal. Em 18 de Outubro, aboliu-se o juramento com carácter religioso. Em 22 de Outubro, suprimiu-se o ensino religioso tanto nas escolas normais primárias de formação de professores, como nas outras escolas. Em 23 de Outubro, extinguiu-se a Faculdade de Teologia na Universidade de Coimbra. Em 26 de Outubro, mandou-se que todos os dias fossem de trabalho, mesmo os santificados pela Igreja, exceptuando os domingos para descanso e dois feriados religiosos – Natal e Ano Novo. Em 03 de Novembro, publicou-se a lei do divórcio, atacando a família nos seus fundamentos. Em 28 de Novembro, mandou-se que as forças do Exército e da Armada não tivessem intervenção directa ou indirecta nas solenidades religiosas. Em 25 de Dezembro, formularam-se as chamadas leis da família, em que o matrimónio passou a ser considerado como um contrato «puramente civil». Em 31 de Dezembro, proibiu-se o ensino religioso em todas as escolas e o uso do hábito ou veste talar em público, sob pena de prisão «por toda a pessoa do povo». No mesmo dia, um outro decreto determinou que continuariam sob a guarda e na posse do Estado todos os bens mobiliários ou imobiliários, que, por virtude do decreto de 8 de Outubro, têm sido e forem arrolados pelas autoridades administrativas e judiciais. E em 18 de Fevereiro de 1911, decretou-se o Código do Registo Civil, onde foi tornado obrigatório o registo civil dos nascimentos, casamentos e óbitos e onde também se puseram entraves à acção espiritual dos sacerdotes.
D. João Evangelista de Lima Vidal, assim que em 14 de Novembro de 1910 chegou a Luanda, vindo do interior de Moçâmedes, apressou-se a enviar para Lisboa um telegrama ao Governo Provisório, por intermédio do ministro da Marinha e das Colónias, nos seguintes termos: - «Tendo chegado hoje a esta cidade, de regresso de uma visita pastoral, apresento ao Governo os meus cumprimentos, desejando-lhe todas as prosperidades» (O Colonial, Lisboa, 21-11-1910). Levou-o a tomar esta atitude o facto de encontrar tranquilidade em Luanda, mesmo com respeito pela sua pessoa… mas ainda desconheceria a publicação dos primeiros diplomas do Governo, atentatórios da Igreja e da sua missão, que também iriam ter graves reflexos no Ultramar Português, tanto na obra assistencial e educativa, como na actividade missionária.
Contudo, também o arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes, escreveu tanto ao dr. Bernardino Machado como ao dr. Afonso Costa, logo após a implantação da República; ao primeiro formulou votos com relação às medidas sobre a separação da Igreja; ao segundo disse que, «tanto na qualidade de cidadão português como na de ministro da Igreja Católica, […] acatava lealmente a nova forma de Governo como a expressão da vontade nacional» e fazia votos por que a República «siga o caminho da justiça e da paz, da ordem e do progresso, com todas as classes de pessoas» (vd. Cón. Jerónimo de Alcântara Guerreiro, Mons. Aloisi Masella e o Arcebispo de Évora D. Augusto Eduardo Nunes, Évora, 1968, pgs. 20-21).
Se mons. Júlio Tonti advertiu D. João Evangelista da sua ‘imprudência’, a Santa Sé, por intermédio de mons. Masella, diria aos bispos em carta de 29 de Julho de 1911: - «A adesão às instituições de um Governo, republicano ou monárquico, é ilícita, se importa a aprovação de factos e decretos iníquos; porém, pode admitir-se, se significa submissão e obediência aos poderes constituídos, em tudo o que não é contrário às leis de Deus e da Santa Igreja» (vd. idem, pg. 23).
Perante a sucessão contínua de diplomas gravosos para a Igreja, o referido bispo de Coimbra, em 31 de Dezembro, desabafaria ao bispo de Angola: - «As coisas da Igreja vão por tal modo que apetece mais morrer do que assistir a este esfacelamento dela. Não lhe digo nada do que por cá vai, porque saberá tudo pelos jornais, e estamos agora todos a tremer sem sabermos como virá a separação da Igreja do Estado, mas coisa boa certamente não virá» (Arquivo Diocesano de Aveiro – original).
Os bispos portugueses da Metrópole não podiam calar-se ante a legislação ofensiva à Igreja Católica e aos seus princípios. Em 24 de Dezembro de 1910, assinaram todos uma carta pastoral colectiva, divulgada dois meses mais tarde, que, não sendo um grito de revolta contra as novas instituições – pois os prelados até prometiam obedecer aos poderes constituídos – era todavia um documento cheio de firmeza, escrito com elegância, dignidade e correcção, que assim começava: - «Tempestuoso, em verdade, é o período histórico e anormal que a nossa pátria vai atravessando. Melindrosa, cheia de perigos era e é a situação… Mas poderão estas apreensões dispensar-nos de falar? Não, que o temor atingiria a meta da cobardia e o silêncio podia ser havido por traição. E nós bispos, acusados por vezes de demasiada prudência e longanimidade, temos, mercê de Deus, a consciência de não sermos traidores à nossa missão.» E mais adiante: - «A Igreja reconhece a independência e a soberania da sociedade civil; não é adversa a nenhuma forma de Governo, desde que ela respeite a honestidade e a justiça. Reconhece, portanto, como um dever de consciência da parte dos católicos, a obediência aos poderes constituídos, salvos os direitos preferentes de Deus, Legislador Supremo. Em harmonia com estes princípios é que os fiéis têm de orientar a sua vida pública».
Protestando contra as violências do Regime republicano, os bispos, sempre unidos e a uma só voz, davam aos católicos algumas normas práticas: – Não cooperarem nem aprovarem o que fosse hostil ao Catolicismo; esforçarem-se por remover da legislação o que fosse incompatível com a doutrina da Igreja; procurarem favorecer, por meios legais e honestos, a causa da mesma Igreja; e, unidos num terreno comum, empenharem-se esforçadamente para remover da legislação tudo o que à mesma causa seja favorável, combatendo animosamente contra a ‘civilização anticristã’. A dita carta pastoral é bem um dos poucos documentos que marcam na história os casos esporádicos de carácter e de honra. O Governo mandou apreendê-la, proibindo a sua leitura nas igrejas, nas capelas e noutros lugares públicos, bem como a sua difusão em periódicos; os párocos desobedientes seriam detidos e processados e os jornais suprimidos. Estas determinações foram transmitidas em circulares aos governadores civis; em telegrama de 04 de Março de 1911, o dr. Afonso Costa comunicou aos bispos que o Conselho de Ministros resolvera «negar o beneplácito à pastoral […] recentemente distribuída sem autorização do poder civil», tomando várias medidas coercitivas para impedir a sua leitura, «sem prejuízo de outras providências.»
Houve vexames a bispos e a sacerdotes, por terem corajosamente cumprido em consciência os inalienáveis deveres de homens da Igreja. Agora como então, os piores acontecimentos nada poderão contra a certeza de quem vive os valores da fé em Deus. Na Diocese do Porto, por exemplo, o documento foi distribuído para se ler em 26 de Fevereiro; mas, na própria manhã deste dia, que era domingo, o Governo exigiu que não se publicasse a pastoral. O idoso prelado, contudo, manteve a ordem episcopal, sob a pena canónica de suspensão para os párocos que não a lessem ao povo, ou do seu conteúdo não dessem conhecimento pormenorizado. O arrojado bispo, D. António José de Sousa Barroso, grande figura de bondade e insigne benemérito da Igreja e da Pátria, que fora invulgar missionário em Angola, recebeu ordem imediata do dr. Afonso Costa para se apresentar em Lisboa; foi sob custódia e, na chegada à capital, sofreu enxovalhos e apupos malcriados – ao que ele se mostrou indiferente. O ministro da Justiça e dos Cultos interrogou-o, não aceitou as suas explicações, ‘destituiu-o’ e, humilhando-o, desterrou-o do Distrito do Porto, enquanto o governador civil ficava encarregado de selar todas as dependências particulares do prelado. Em face desta e de outras alíneas da acção governativa do dr. Afonso Costa, diria sobre ele o dr. António José de Almeida: - «Réu de crimes sem nome, será condenado, para todo o sempre, a trabalhos forçados nas galés da História.» (cit. por Jesus Pabón, A Revolução Portuguesa, atrás refer., pg. 159 e 161).
A Santa Sé, por sua vez, também foi tomando uma atitude reservada ante aquilo que se verificava, semana a semana. Era núncio apostólico em Lisboa, desde Dezembro de 1906, mons. Júlio Tonti, arcebispo titular de Ancira. Em 20 de Outubro de 1910, dadas as primeiras mostras de anti-clericalismo oficial, decidiu retirar-se para a Itália. Ficou encarregado da Nunciatura e representante oficioso do Vaticano mons. Bento Aloisi Masella, jovem sacerdote de trinta e dois anos de idade, o qual passou a corresponder-se com a Santa Sé por intermédio do núncio em Madrid. Era um diplomata de boa formação, dotado de uma inteligência esclarecida e de uma vontade firme, que soube orientar e encorajar os bispos em numerosas dificuldades e informar fielmente a Santa Sé, de quem recebia directrizes para as transmitir. Nesses anos conturbados da nossa vida político-religiosa, granjeou a admiração de todo o Episcopado Português.
A esta distância, já com certa perspectiva histórica, vemos que, nesse árduo período de 1910-1920, se foram abrindo novos caminhos ao Catolicismo na nossa pátria, preparando-se uma Igreja livre das prepotências do Estado, em que o clero deixou de ser uma das categorias de funcionários públicos às ordens do Governo; se é certo que a revolução de Outubro trouxe horas amargas e injustas, também não é menos exacto que ela ficou a marcar um ponto de partida na libertação de uma opressão liberal e regalista. Os meios é que poderiam ter sido outros, numa linha de respeito e de diálogo.
Em simples análise histórica, verifica-se que a proclamação da República iria coincidir com uma mudança no mundo católico, a qual já vinha de décadas anteriores. Procurava-se formar os cristãos para um activismo consciente em relação à vida política e à questão social, sem deixarem de ser pessoas de prática religiosa. Era esta uma viragem significativa promovida pela hierarquia da Igreja, mas não directamente protagonizada por ela; incentivam-se os crentes a organizarem-se de forma a serem interventivos na sociedade civil, inspirados na doutrina social da Igreja. O renascimento e a expansão do Catolicismo eram evidentes sobretudo através da multiplicação de instituições, como centros de formação e de educação para jovens, organizações de evangelização e de oração, ‘Círculos Católicos’ para os operários com significado religioso, socorro mútuo e tipo sindical, ‘Centro Académico de Democracia Cristã’ ligado à juventude universitária de Coimbra, congressos para a coordenação das actividades no meio ambiente, associações de finalidade missionária, colégios, estabelecimentos de caridade, editoras de livros, revistas e jornais (dos quais cinco eram diários) e muitas outras instituições. Isto causou um motivo de irritação  para monárquicos e republicanos; uns e outros buscavam  pretexto para criarem uma ‘questão religiosa’ que servisse aos seus fins políticos.
 O movimento, que havia arrancado com o I Concílio Ecuménico do Vaticano (1869-1970), teve como seu grande incentivador o papa Leão XIII através de uma série de encíclicas – ‘Indescrutabile’ (1878), ‘Quo Apostolici Muneris’ (1878), ‘Æterni Patris’ (1879) e especificamente a famosa ‘Rerum Novarum’ (1891); o seu sucessor, S. Pio X (1903-1914) preocupar-se-á principalmente com a separação dos poderes dentro das esferas que lhes são próprias, combatendo a intromissão dos Estados na vida religiosa – campo este em que a nossa Iª República lhe dará ocasião de protesto, pois Portugal foi o caso mais grave que teve de enfrentar.
Neste meio tempo, ia-se anunciando para breve a Lei de Separação da Igreja do Estado; e, desde então já se suspeitava que tal lei iria fazer do anticlericalismo a prioridade política da República. Neste contexto, diz-se que o dr. Afonso Costa, no dia 26 de Março, numa sessão magna do Grémio Lusitano da Maçonaria, realizada em Lisboa, fez ‘sensacionais declarações’ sobre a próxima lei, afirmando: - «No regime de separação irá conhecendo pouco a pouco o povo que a Igreja é um grande polvo, que o há-de sugar por todas as formas, à medida que o orçamento for sendo aliviado das pensões vitalícias que, neste momento, são concedidas aos actuais serventuários da Igreja. Está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da medida será tão salutar que, em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu. Assim Portugal se distinguirá entre todos os povos latinos da Europa e da América, dando-lhes o exemplo da liberdade». E terminou: - «Saiba ao menos morrer quem viver não soube!» Por sua vez, o dr. Sebastião de Magalhães Lima, grão-mestre da Maçonaria, afirmaria em princípios de Maio: - «Dentro de alguns anos não haverá quem queira ser padre em Portugal; os seminários ficarão desertos.»
Efectivamente, em 20 de Abril de 1911 o Governo Provisório aprovou a ‘Lei de Separação da Igreja do Estado’ – expressão máxima dos ataques à Igreja Católica e às suas instituições, cujo conteúdo controverso excedeu em muito o que o seu nome indica. Os respectivos defensores, reputando-a como o fundamento emblemático, a obra-prima e a pedra angular do edifício jurídico da República, chamaram-lhe ‘lei intangível’; os adversários, porém, alcunharam-na de ‘lei celerada’. Não era original, porque seguiu de perto a lei francesa de 11 de Dezembro de 1905; mas as suas prescrições revelavam-se mais severas do que as dos diplomas precedentes. Escreveu o prof. António José Telo (idem, pg. 186): - «Afonso Costa sabe perfeitamente qual o verdadeiro alcance da lei, que é entendida como o pivô central da sua estratégia política, o xeque-mate às veleidades dos republicanos moderados de fazerem a ponte para o país rural e católico.»
A lei, nos seus cento e noventa e seis artigos, continha efectivamente uma ampla série de disposições que consagravam a separação entre a Igreja e o Estado – assunto que já tinha sido discutido em 1871, nas ‘Conferências do Casino’, em Lisboa, promovidas por Antero de Quental. Contemplado algum do seu conteúdo na legislação dos meses anteriores, a partir de Outubro, era aceite por uma parte das classes populares e intelectuais, incluindo muitos católicos. Mas esta lei vai muito mais longe… mesmo em determinações de ingerência na vida e actividade da Igreja, com o fim de manter as instituições religiosas sob o seu controlo e de romper a estrutura hierárquica católica, com a mira da formação de uma Igreja nacional, totalmente desligada da jurisdição romana e fiscalizada em absoluto pelo poder civil. Aqui se lembram somente algumas disposições.
O diploma, que efectivamente reconhecia e garantia a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda os estrangeiros que habitassem o território português (artº 1), declarava que o Catolicismo deixaria de ser a religião oficial do Estado e apartava das instituições políticas a intromissão das confissões religiosas, quaisquer que elas fossem; neste ponto de vista, colocavam-se em pé de igualdade todas as igrejas e todos os credos, sendo consideradas como «legítimas agremiações particulares» que apenas podiam existir «desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português» (artº 2). Contudo, havia uma especificidade na mira dos seus promotores, qual era a restrição da presença e da influência da Igreja Católica na vida social.
O Estado determinou que não permitiria qualquer acto de culto, incluindo as procissões ou funerais católicos, fora dos templos, excepto mediante autorização especial, que devia ser examinada caso a caso e que não era normalmente concedida nos primeiros tempos do Regime (artº 55). Em cada paróquia deveria formar-se uma ‘comissão ou corporação de culto’, composta por cidadãos nomeados pela Administração para controlar os actos da Igreja, inclusive a gestão dos donativos dos crentes e o resguardo dos bens expropriados; estas corporações teriam ainda o encargo de aplicar em actos de assistência e beneficência uma percentagem do que viessem a receber para fins cultuais (artº 17 e artº 32).
Seria condenado o ministro de qualquer religião, que, no exercício do seu ministério, ou por ocasião de qualquer acto do culto, em sermões ou em discursos públicos verbais, ou em escritos publicados, injuriasse alguma autoridade pública ou atacasse algum dos seus actos, ou a forma do Governo ou as leis da República, ou negasse ou pusesse em dúvida os direitos do Estado, ou provocasse qualquer crime (artº 48).
Quanto a sinais ou emblemas religiosos, a sua aposição passou a ser proibida nos monumentos públicos, nas fachadas de edifícios particulares ou em qualquer outro lugar público, à excepção dos edifícios habitualmente destinados ao culto de qualquer religião e dos monumentos funerários ou sepulturas dentro dos cemitérios (artº 60). Também ficou vedada a publicação em quaisquer templos ou outros lugares habitual ou acidentalmente aplicados ao culto, ou mesmo noutros lugares públicos, ou a impressão ou a publicação, separadamente ou por intermédio de jornais, quaisquer bulas, pastorais ou outras determinações da Cúria Romana, dos prelados ou de outras entidades, que tivessem funções dirigentes em qualquer religião, sem delas dar conhecimento prévio ao Estado que, pelo Ministério da Justiça, lhes poderia negar o beneplácito (artº 180).
Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da Religião Católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados (artº 62). Os paços episcopais, as residências paroquiais e os seminários seriam concedidos para a habitação dos ministros da religião católica e para o ensino teológico, embora sem pagamento de renda, se não se verificasse qualquer falta de lealdade à República (artº 98 e artº 99); as quintas, quintais, cercas, passais e outros terrenos rústicos anexos ou não às residências episcopais e paroquiais, não são compreendidos na cessão gratuita prevista no diploma (artº 101).
O uso, fora dos templos e das cerimónias cultuais, de hábitos ou vestes talares ficou expressamente proibido a todos os ministros de qualquer religião, seminaristas, membros de corporações de assistência e beneficência, encarregadas ou não do culto, empregados e serventuários delas e dos templos, e, em geral, a todos os indivíduos que directa ou indirectamente interviessem ou se destinassem a intervir no culto (artº 176).
A Lei de Separação, que extinguiu «as côngruas e quaisquer outras imposições destinadas ao exercício do culto católico» (artº 5), também determinou que «os ministros da Religião Católica, cidadãos portugueses de nascimento, ordenados em Portugal, que à data da proclamação da República exerciam nas catedrais ou igrejas paroquiais funções eclesiásticas dependentes da intervenção do Estado, e que não praticaram depois disso qualquer facto que importe prejuízo para este ou para a sociedade […], nomeadamente dos previstos no artigo poderão receber da República uma pensão vitalícia anual» (artº 113), nas condições descritas pormenorizadamente em diversos artigos, alguns deles humilhantes para o clero. Todavia, obedecendo aos ditames da sua consciência de ministros da Igreja e não de serventuários do Estado, todos os bispos e quase todos os sacerdotes confiaram na generosidade dos fiéis e renunciaram à benesse das ‘pensões’ de sobrevivência, pelo que o Governo estendeu esse ‘benefício’ aos sacristães, músicos, sineiros, etc.
Em mais duas vezes, o dr. Afonso Costa voltaria a repetir o que já havia afirmado no mês de Março; em discursos polémicos, primeiro em 24 de Abril na cidade de Braga e no dia seguinte no Porto, teria dito que «as religiões estão condenadas ao desaparecimento e que o Catolicismo acabaria em duas ou três gerações.»
A Lei de Separação, que entrou em vigor no dia 01 de Julho de 1911, é um estatuto deprimente e uma declaração formal de guerra contra a Igreja, a qual se viu tolhida na realização do culto público, espoliada dos seus bens e limitada nas suas fontes de subsistência, além de os seus ministros serem tratados como cidadãos de categoria inferior. Foi esta lei, mais do que as várias outras medidas anteriores, que causaram grandes perturbações ao longo dos anos seguintes e contribuíram para os católicos se afastarem da República.
Vêm a propósito as considerações de Guerra Junqueiro, citadas por Raul Brandão em 17 de Maio de 1911 (Memórias – II, digitalização e revisão de Ernestina de Sousa Coelho – 2002, pg. 59): - «A lei é estúpida, dignifica o padre e vai ferir o sentimento religioso do povo português. Resultado: a guerra civil. Se a não modificarem, temo-la dentro de pouco tempo. O povo odiava o jesuíta, o povo não se importava com o padre. Era cortar em carne morta. Mas, com esta lei, o caso muda de figura, e só o mau padre, só o bandalho a podem aceitar. Havia a convidar o padre com bons modos a sentar-se à mesa e depois convidá-lo amavelmente a comer. Que fez o Afonso Costa? Antes de lhe dar de comer, pespegou-lhe uma bofetada na cara e um pontapé no traseiro. E há dois dias faz uma conferência no Porto dizendo que ia acabar com o Cristianismo! É tolo. […] A República ou se modifica ou morre. Isto não resiste a quarenta tumultos por esse país fora.» Meses depois, em 31 de Dezembro, Brandão registava mais estas palavras de Junqueiro: - «Já hoje, se fosse possível fazer um plebiscito ao país, não com papéis, mas dentro da consciência de cada um, na escuridão do seu quarto, a maioria monárquica era esmagadora. Havia menos republicanos do que antes do 05-de-Outubro.»
Na realidade, para evitar possíveis reacções mais generalizadas e mais desfavoráveis ao Regime, o dr. Afonso Costa teve a arte política de só aplicar a Lei de Separação de forma selectiva e, mesmo assim, não retirar dos templos as imagens ou outras peças valiosas, da devoção e do carinho das populações. Noutra visão, é preciso salientar que muitos dos actos de perseguição à Igreja e ao clero desde o primeiro dia da República, com agressões e prisões, em larga medida foram espontâneos. O dr. Afonso Costa não os fomentou; hábil como era, limitou-se a gerir um movimento espontâneo para a construção do seu poder pessoal.
Para executar a Lei de Separação, em 18 de Maio foi constituída uma ‘Comissão Central’, que expediu milhares de circulares e de pareceres, atentatórios dos direitos da Igreja. Receando que os sacerdotes deixassem, como protesto, o exercício dos seus deveres pastorais, o dr. Bernardino Machado, que interinamente sobraçava a Pasta da Justiça, em 30 de Junho enviou aos administradores de concelho instruções para que intimassem os párocos a administrarem os sacramentos e a realizarem «qualquer acto do seu ministério, incluindo a missa conventual, onde o povo o solicitasse.» Em circular de 01 de Julho, o mesmo membro do Governo convidou os bispos a enviarem «as ponderações que o seu critério sugerir sobre a Lei de Separação do Estado das Igrejas» e, em 25 de Julho, a declararem «os seus sentimentos» para com as instituições republicanas; no mesmo dia, ainda insistiu na proibição dos hábitos talares, enquanto não estivessem «emancipados os ministros católicos das influências ultramontanas.» Falando em 27 de Julho no Parlamento, o dr. Afonso Costa declararia que, tal como sucedera em França, o propósito era, sem violências, impor aos bispos a completa obediência ao poder republicano; porém, acabaria por reconhecer que um bispo, sendo castigado, era reconhecido como herói pelos crentes, solidamente unidos aos seus pastores. As determinações governamentais só traziam custos negativos para a República; a força do poder redundava em fraqueza.
Como se viu, a resistência da Igreja à ofensiva republicana foi inicialmente moderada; mas, depois da publicação da Lei de Separação em 1911, assumiu formas mais radicais. Surgiram imediatamente as reacções do clero; apontam-se apenas como exemplos as reuniões dos cónegos e párocos de Lisboa e de Évora, respectivamente em 25 e 28 de Abril.
Com a data de 05 de Maio, o Episcopado Português, numa linguagem cáustica e directa, apresentou um ‘protesto colectivo’ contra as disposições dessa lei, classificando-a mesmo como «injustiça, opressão, espoliação e ludíbrio.» Assim, nesta contingência dura e difícil, os bispos manifestaram com verdadeira e lúcida coragem, pessoal e colectivamente, publicando e fazendo circular documentos com orientações concretas para o povo cristão; efectivamente, mais uma vez eles continuaram uma tradição resistente, capazes de enfrentar momentos difíceis e até perseguições, tendo a consciência de que tinam e têm a obrigação moral de transmitir a mensagem religiosa e humanizadora de Jesus Cristo. Assim escreveram os bispos para começar o dito ‘protesto’: - «Foi vibrado o golpe! Realizou-se a previsão… Realizou-se? Não; foi excedida. O facto foi além da expectativa. A calamidade superou o receio. Receava-se a dureza, veio a atrocidade; receava-se a sujeição, veio a tirania; receava-se o cercear das garantias e direitos, veio a humilhação vilipendiosa; receava-se a grave e penosa redução dos necessários recursos materiais, veio a confiscação; receava-se, enfim, a injustiça, veio com ela o sarcasmo. E podemos nós calar-nos?» E afiançavam, quase a terminar: - «A Religião Católica deixou de ser a do Estado; não deixará, porém, de ser a do povo português. O povo português não pode separar-se do centro de unidade cató­lica, não há-de apartar-se daquele que é na terra o vigário de Cristo, o sucessor de Pedro, a cabeça donde se deriva e sem a qual é impossível a vida deste organismo social que se chama a Igreja de Deus; ubi Petrus ibi Ecclesia. O povo português escutará e respeitará a voz da Santa Sé. […] Depois de Roma falar, o clero católico do nosso país sabe o caminho a seguir: obediência ou apostasia. Estamos no momento da máxima gravidade na vida do Catolicismo em Portugal. A joeira de Satanás vai trabalhar. Haverá joio? É crível, é condição humana e é lição da história. Mas esperamos que a cizânia não será muita. Os factos já conhecidos autorizam-no a confiar que os padres por­tugueses estarão ao lado dos seus prelados; e prelados e padres bem como os simples fiéis, intimamente unidos entre si pelos laços da coorde­nação e comunhão de crenças e de sentimentos, de corações e de von­tades, darão testemunho eloquente de subordinação perfeita e de fideli­dade inquebrantável à voz do supremo hierarca, que faz as vezes do Filho de Deus na terra.»
Por outra parte, o Governo Provisório não teve em conta a projecção desfavorável que a Lei de Separação poderia ter – e teve – no estrangeiro; e até surgiram movimentos de simpatia pela restauração monárquica em Portugal – como aconteceu na Inglaterra. O próprio vencedor da revolução, Machado dos Santos, não escondeu o seu desapontamento e escreveu em 20 de Maio de 1911 (O Intransigente, Lisboa): - «Regímen novo, regímen honesto, todos esperavam que fosse novo nos processos e honesto nas intenções; que se não manchasse do sangue das vinganças mesquinhas, mas que se não deixasse enlamear no churdeiro das transigências vergonhosas.»
A condenação mais forte surgiria do próprio papa. De facto, S. Pio X, que já em 15 de Março enviara ao nosso Episcopado a epístola ‘Nostris subiiciendas’, aprovando a doutrina exposta na carta pastoral colectiva, publicou em 24 de Maio a encíclica ‘Jamdudum in Lusitania’; o sumo-pontífice condenou a lei como «péssima e perniciosíssima», por ‘repudiar’ a Religião Católica, ‘oprimir’ e ‘tiranizar’ a Igreja, legislar sobre a formação nos seminários e excluir o clero da própria organização do culto, ao mesmo tempo que apelou à resistência dos bispos, dos sacerdotes e dos crentes em geral. Foi uma resposta ao mais alto nível. Com este estímulo, é fácil imaginar qual iria ser a reacção da hierarquia e do clero.
Todavia, a intervenção pontifícia não logrou pôr cobro ao confronto desabrido entre a Igreja e o Estado. O Governo, que não esperava tão grande resistência, respondeu que os bispos e os sacerdotes, se desobedecessem ao estipulado pelo diploma, eram ‘destituídos’ e desterrados dos respectivos Distritos. Ainda em 1911, numa rápida sucessão, depois de o bispo do Porto ser exilado, foi a vez do da Guarda, do cardeal-patriarca de Lisboa e de outros, respectivas funções na sua Diocese; todos, juntamente com os governadores dos Bispados e muitos párocos, sofreram o dito castigo durante dois anos. Pouco depois, em 10 de Julho de 1913, concretizar-se-ia o corte oficial das relações diplomáticas com a Santa Sé, extinguindo-se a Embaixada Portuguesa junto do Vaticano.
Ainda naquele ano de 1911, em 28 de Maio, foi eleita a Assembleia Nacional Constituinte, que logo tratou de discutir e redigir a Constituição da República Portuguesa; esta, uma vez aprovada em 21 de Agosto, entrou imediatamente em vigor, vigorando até 09 de Junho de 1926. Por ela, também o laicismo se tornou um direito constitucional, não sem, desde logo, começar a criar graves motivos de discórdia e importantes fracturas na sociedade, que se reflectiriam em vários sectores, criando uma grande instabilidade política; cumpria-se assim, após as leis emanadas do Governo Provisório, o programa de secularização forçada, que havia sido um dos pontos mais acentuados na propaganda republicana.
Concretamente, no título II, artigo 3º, a Lei Fundamental garantia «a portugueses e estrangeiros no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade», nomeadamente nas seguintes alíneas: – A liberdade de consciência e de crença era inviolável (nº 4); O Estado reconhecia a igualdade política e civil de todos os cultos e garantia o seu exercício nos limites compatíveis com a ordem pública, as leis e os bons costumes, desde que não ofendessem os princípios do direito público português (nº 5); ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da que professasse (nº 6); ninguém podia, por motivo do opinião religiosa, ser privado de um direito ou isentar-se do cumprimento do qualquer dever cívico (nº 7); era livre o culto público de qualquer religião nas casas para isso escolhidas ou destinadas pelos respectivos crentes, e que poderiam tomar a forma exterior de templo; mas, no interesse da ordem pública e da liberdade e segurança dos cidadãos, uma lei especial iria fixar as condições do seu exercício (nº 8); os cemitérios públicos passaram a ter carácter secular, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos, desde que não ofendessem a moral pública, os princípios do direito público português e a lei (nº 9); o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos e particulares fiscalizados pelo Estado seria neutro em matéria religiosa (nº 10); era mantida a legislação em vigor que extinguira e dissolvera em Portugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela filiadas qualquer que fosse a sua denominação, e todas as congregações religiosas e ordens monásticas, que jamais seriam admitidas em território português (12º); o estado civil e os respectivos registos seriam da exclusiva competência da autoridade civil (nº 33).
Entretanto, nos finais de Novembro de 1911, aconteceria um incidente imprevisto e incómodo, que pôs à beira do desequilíbrio a unidade de actuação do Episcopado na luta contra as leis eversivas do Regime Republicano, devido a uma desatenção de D. Manuel Correia de Bastos Pina, bispo corajoso e arrojado da Diocese de Coimbra – que também o era destas terras de Aveiro. Com a idade de oitenta e um anos e já numa fase de decadência das suas inegáveis e reconhecidas capacidades no governo pastoral, antes de partir para uns dias de repouso na sua casa da Carregosa, deixara para publicação uma carta pastoral em que, perante as dificuldades impostas pela Lei de Separação, exortava os diocesanos a contribuírem para as despesas do culto e para a sobrevivência do clero. Sem medir o alcance do seu acto, e temendo que os párocos sofressem retaliações pela sua leitura, no dia 27, quando o documento começava a ser distribuído, D. Manuel dirigiu ao ministro da Justiça e dos Cultos um telegrama, pedindo-lhe o beneplácito. Rejubilou o Governo com o deslize do velho prelado, fazendo publicar na imprensa o telegrama acompanhado da resposta do ministro, em que este se congratulava «pela resolução de obediência à legítima supremacia do poder civil.» Tal atitude produziu escândalo nos ambientes católicos e mal-estar no Episcopado. Logo que o advertiram, D. Manuel, muito impressionado ou quase sucumbido, em 01 de Dezembro dirigiu ao ministro um ofício, no qual explicava o seu procedimento e afirmava com decisão os seus sentimentos de bispo católico. Na mesma data, enviou uma carta aberta ao cón. José Alves Matoso, vice-reitor do Seminário, que correu impressa, onde se confessou muito arrependido de haver enviado o telegrama ao ministro, «pela significação que lhe deram – dizia – reconhecer eu a supremacia do poder civil sobre o eclesiástico, o que nunca esteve no meu íntimo, nem podia estar.» Contudo, continuando fora de Coimbra, pediu desculpa pública ao Santo Padre, aos bispos, aos sacerdotes, aos diocesanos e a todos ao católicos; reduzindo-se ao silêncio, confiou o governo da Diocese ao referido cónego, que mais tarde, em Outubro de 1914, seria nomeado bispo da Guarda. Bastos Pina acabou por falecer em Novembro de 1913.
Já se referiu que a implantação da República em Portugal aconteceu num período histórico não de decadência da Igreja, mas de um seu renascimento, com base em doutrinas que apontavam para uma intervenção directa dos católicos na vida social e política. Em semelhante contexto, era precisamente normal que, depois da Lei de Separação, o movimento católico tivesse mudado de carácter. Deste modo e nestas circunstâncias, embora prosseguindo-se na frente de resistência ao ataque contra a Igreja e os seus valores, iria surgir paulatinamente um partido democrata-cristão, como já havia acontecido noutros países europeus. Afinal, a acção do dr. Afonso Costa, sem o pretender, favoreceu e acelerou o processo.
No decurso da primeira guerra mundial, que decorreu em 1914-1918, notou-se um certo ambiente favorável a alguma calma nas relações entre a República e a Igreja. A amnistia nos finais de 1914 abrangeu vários bispos e sacerdotes, que regressaram ao exercício das suas funções pastorais. Em Junho de 1915, os católicos apresentaram candidaturas nos círculos da Braga, de Guimarães e de Oliveira de Azeméis, tendo conseguido eleger dois nomes – um para o Senado e outro para a Câmara dos Deputados. E, no mês de Agosto de 1917, num congresso em Braga emergiu o ‘Centro Católico Português’, com expressão nacional, animado por uma doutrina e uma filosofia próprias, cujas missões básicas consistiram na difusão da fé, na promoção da acção social da Igreja e na defesa dos interesses da Igreja na esfera política. No meio de conjunturas adversas, a Igreja Católica, com o seu laicado organizado, renascia no seu vigor e manifestava-se com toda a sua imensa força, num processo de recomposição. Os cristãos conscientes não tinham o receio de serem mal vistos por causa da sua coerência de fé; a paz também se conquista à custa de inquebrantável perseverança.
Entrementes, em 22 de Janeiro de 1917, o Episcopado Português, sempre a uma só voz, havia publicado uma ‘instrução pastoral’, com necessárias e oportunas orientações para os católicos, que deveriam agir sem medo, mas com clarividência, serenidade e prudência; concretamente, os bispos apelaram à acção política da ‘União Católica’, donde derivaria o referido ‘Centro Católico’. Vale a pena transcrever as primeiras palavras do documento: - «Falar em nome de Deus, recordar através dos séculos as verdades divinamente reveladas e os preceitos divinamente intimados ao género humano; instruir, admoestar, exortar na sã doutrina; clamar, incessantemente, erguendo a voz como tuba sonora, para advertir dos perigos e chamar às fileiras os soldados da fé; vigiar e fortalecer na crença e na virtude os seus irmãos; instruir oportuna e importunamente na doutrinação, é a alta missão que o Homem-Deus, instruindo a Igreja e transmitindo-lhe a sua própria autoridade, conferiu e confiou aos Apóstolos e seus sucessores.»
Por fim, com o intento de «restaurar a justiça e o império da lei», pondo termo à agitação em que se encontrava o país desde a proclamação da República, em 05 de Dezembro de 1917 estalou a revolução chefiada pelo dr. Sidónio Pais, uma das figuras fracturante da política portuguesa e presidente da República até ao assassínio perpetrado em 14 de Dezembro do ano seguinte. O novo Governo, logo em 09 de Dezembro, anulou o castigo do exílio que pesava sobre D. António José de Sousa Barroso, bispo do Porto, sobre o cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, e, em 22 do mesmo mês, aboliu o que igualmente martirizava os outros ministros da Religião. Em 22 de Fevereiro de 1918, o dito presidente modificou as disposições da ‘Lei de Separação da Igreja do Estado’ que mais feriam os católicos. Finalmente, em 25 de Julho de 1918, com a colaboração expedita do nosso embaixador junto da Corte Espanhola, prof. doutor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, foram restabelecidas as relações diplomáticas com a Santa Sé. Posteriormente, as alterações políticas que sobreviveram à morte do dr. Sidónio Pais não trouxeram qualquer alteração substancial à situação da Igreja; a organização dos católicos já significava uma força digna de consideração.
A implantação da República foi, na verdade, uma ocasião de viragem positiva para a Igreja Católica em Portugal. Deus escreve sempre direito por linhas tortas; e o que muitos pensaram ser a causa da sua morte próxima, iria tornar-se numa conjuntura para um novo estatuto de uma recomposição interior, que a faria viver independente das peias do Estado laicisante. Também hoje como outrora, numa sociedade cada vez mais secularizada em que frequentemente, de forma camuflada ou às claras, se terçam armas contra a Igreja, os cristãos não podem cruzar os braços e deixar correr. Perante o denegrir dos valores humanos, morais e espirituais do Evangelho ou o abafar da influência da Religião, facilmente se conclui pela necessidade urgente de que os católicos, nos partidos políticos, nas associações empresariais, nos sindicatos, nas manifestações públicas, nas comunidades escolares, nos diálogos com a cultura e nos mais diversos locais e ocasiões, comuniquem e testemunhem com decisão e por todos os meios ao seu alcance, de modo consciente, dinâmico, atractivo e inovador, a ‘palavra que dá a vida’ e ‘a vida em abundância’. Para isso, embora continuando na mesma fidelidade a Jesus Cristo no curso da história, a Igreja Católica considera-se obrigada a sempre se actualizar em cada momento, no lugar onde está ou vai em missão.
A propósito, transcrevo o comentário de D. António Baltasar Marcelino, bispo emérito de Aveiro, publicado no semanário Correio do Vouga, na sua edição de 06 de Outubro de 2010: - «Ouvimos agora falar muito dos ‘valores republicanos’ que, diz-se, é preciso defender e promover. Falam disto os republicanos tradicionais e os mais modernos. Fala o que resta da geração da velha Carbonária. Fala a Maçonaria actual e as suas lojas. Falam ministros socialistas e laicos de todas as cores. Fala-se, também, no Parlamento, em discursos políticos, em entrevistas e escritos diversos. A todos parece que a salvação do país e a solução da crise estão na implementação rápida destes valores, mais do que na sua efectiva compreensão. Diz-se serem eles o legado da República, via Revolução Francesa, a ‘bíblia’ dos sistemas que enchem os seus códigos com a doutrina de uma modernidade mal entendida e não travada a tempo nas limitações que provocam injustiça e empobrecimento social. Contudo, liberdade, igualdade e fraternidade – a trilogia intocável do regime republicano – não traduzem senão conceitos evangélicos e atitudes de uma cultura cristã milenar que ajudou a construção da Europa. Assim o afirma e o afirmará a história, mesmo que dela se rasguem folhas incómodas.»
É o momento de terminar. Como escreveu Homem Christo, «a estrada da vida não é sempre constituída pelas mesmas paisagens e nem sempre formada pelos mesmos materiais» (Monarchicos e Republicanos cit., pg. 409). Reconhece-se que a grandeza e a beleza não evitam a destruição, mas a fé corajosa é sempre capaz de reconstruir. É como o sol, que morre diariamente no horizonte para renascer no dia seguinte, tornando-se o símbolo perene da morte e do renascimento da natureza. O venerável sacerdote e educador francês, padre Emmanuel d’Alzon (1810-1880), fundador das congregações religiosas dos Agostinhos e das Oblatas da Assunção, que durante o século XIX viveu a experiência de várias revoluções e de vários regimes políticos no seu País, dizia e repetia: - «Um mundo morre… um mundo nasce.»

Mons. João Gonçalves Gaspar

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